A Criatura e o Criador
A imagem que dele fazia estilhaçou-se. O ídolo caía do alto do seu patamar, partindo-se em pequenos cacos no contacto com a realidade
Ela teve uma infância infeliz. Os pais separaram-se era ela ainda criança. Mas não foi este facto que lhe deixou marcas para a vida. Foi a ausência do pai e a pouca atenção da mãe, com quem ficou e que responsabilizou pelo divórcio, que fizeram dela uma doente do foro psicológico. Encontrou nos animais o afeto de que um dia se viu privada. Já jovem mulher o seu percurso oscilou entre o consumo de drogas, as casas de alterne, a prostituição e os amores que rapidamente terminavam pela sua incapacidade de amar. Só o ódio lhe dava sentido à vida: ódio pela mãe, pelo pai, pelos ex-namorados …, enfim, ódio por tudo.
Um dia, já bem adulta, o modo de vida que escolheu, subsistir com base na ajuda popular, correu mal. Quando os donativos deixaram de ser suficientes para se alimentar a si e aos que era suposto cuidar o descalabro aconteceu. Atarantada, destilando ódio em palavras e atos, com as autoridades judiciais no seu encalço, responsabilizando-a pela incapacidade demonstrada em proteger as vidas de que era responsável, descobriu nas redes sociais o seu salvador: um narciso à caça da sua presa. Ele gostou da imagem dela surgindo no ecrã do computador. Da conversa à distância rapidamente passaram ao encontro real. Ela viu nele a tábua de salvação para o momento difícil que atravessava. Ele viu nela uma mulher fraca intelectualmente e psicologicamente frágil, com o perfil adequado a uma manipulação fácil.
Ela oferecia-lhe o corpo e a atenção, em troca ele apoiava-a em todas as manifestações de ódio, a razão de ser da vida dela, embora nunca se comprometendo publicamente. Pagava as indemnizações a que ela amiudadamente era condenada em tribunal, em resultado de processos que lhe eram movidos por injúrias em espaço público, mas nunca dava a cara em sua defesa. O apoio era sempre dado em privado. Este era o primeiro ato de sedução praticado pelo narciso. O segundo consistia em apresentar-se como o maior especialista nacional e internacional em Camões e na sua obra. Intitulava-se professor doutorado, autor de várias obras, aclamado pelos seus pares como o maior entendido na matéria e amigo íntimo de todos os políticos e cientistas sonantes referidos nos telejornais. Devota, ela caía aos pés dele. Continuava a entregar-lhe o corpo, mas cada vez mais o via como o pai que não tinha tido e que tinha muito querido ter. O pai e o amante eram agora a mesma pessoa, o ídolo pelo qual ela estava disposta a fazer tudo, até matar se tal fosse necessário.
Ele tinha, assim, nela o instrumento perfeito que podia utilizar, sem se comprometer, contra todas e todos que conseguissem libertar-se do seu jugo manipulador ou que, publicamente ou em privado, pusessem a nu as suas falhas e insuficiências ou que desmascarassem o mar de mentiras espalhadas durante uma vida com o intuito de se autopromover, com isso seduzindo as ou os incautos. Para acionar a arma bastava que ele, com ar pungido, sofrido ou escandalizado despejasse perante ela as dores que sofria por supostamente estar a ser alvo de injustiças ou maldades. A resposta dela, por mensagem telefónica, e-mail ou pelas redes sociais era imediata, atacando o alvo da forma mais violenta, tudo embrulhado na linguagem típica do mundo marginal que tinha percorrido na juventude.
Um dia, uma das vítimas percebeu que ela era só a arma. Ele é que a manipulava e a apontava e, em conformidade, agiu na justiça. Foi então que ele, publicamente, em tribunal, deu expressão real a toda a sua covardia. Que não, que não sabia de nada, que só ela era responsável por todos aqueles dislates, que ele se soubesse nunca a deixaria dizer ou publicar tamanhas aleivosias. Uma vítima, sim, era isso que ele era.
Ao ouvir estas palavras, o mundo dela desabou. A imagem que dele fazia estilhaçou-se. O ídolo caía do alto do seu patamar, partindo-se em pequenos cacos no contacto com a realidade. Pior, pela segunda vez ela perdia um pai e isso era insuportável. E o inevitável aconteceu. Numa noite de dezembro, enquanto ela, junto à lareira, fazia “stripe-tease” ao som do tema “Je t’aime moi nom plus”, ele, sentado à mesa, com espuma nos cantos da boca, contorcia-se em convulsões violentas, resultado do veneno “620 forte” que ela tinha colocado na sua refeição.