Há vidas assim...

Há Vidas Assim...

A Vida que Está ao Lado

Estendeu-se na cama e com os olhos a fecharem-se na sonolência do álcool ainda teve tempo de dizer para consigo:

“Tenho de ver mais vezes o pôr do sol”.

Ele acordou com um sol brilhante a entrar-lhe pela janela. Um primeiro pensamento vem recordar-lhe que era o dia do seu aniversário. Eram cinquenta e cinco anos feitos de algumas venturas, mas, sobretudo, de muitas desventuras. Dois casamentos desfeitos e um filho a viver longe, na cidade, era o seu histórico.

Na casa de entrada da sua moradia tinha a oficina de barbeiro onde alguns cortes de cabelo, muito poucos, aliás, lhe arredondavam a reforma de ex-emigrante na Alemanha. A um canto da barbearia um saxofone indicando a música como uma das paixões da sua vida. Entre a saída e a entrada de um cliente, Manuel Geraldo tocava Louis Armstrong, John Coltrane, Charlie Parker, Chico Buarque e outros grandes músicos que tinha aprendido a gostar num esforço de autodidata. Ao lado do saxofone uma estante repleta de livros revelava um igual gosto pela leitura.

Embora vivendo uma vida calma e serena, repartida entre o corte dos cabelos, a música e as leituras, Ele era um homem profundamente sozinho. E nesse dia dos seus cinquenta e cinco anos a solidão estava-lhe a ser ainda mais pesada. A tarde terminava lentamente e a noite anunciava a sua chegada e ninguém se tinha lembrado de que fazia anos. Nem o filho que não parava de telefonar sempre que tinha problemas.

Tendo por cenário o brilho intenso das estrelas e a luz mortiça do alpendre onde se encontrava sentado, Ele tocou, tocou tudo o que sabia até lhe doerem os dedos e os lábios, com isso exorcizando a dor que lhe ia no peito e todos os fantasmas que lhe povoavam a alma.

Num fim de tarde ela entrou na barbearia sorridente e leve. Falaram de música, de livros, de passado, de presente e também de sonhos. Trocaram olhares, afagos, beijos e fundiram-se num só.

Ele estremeceu. Era sempre o mesmo sonho quando a solidão apertava até não mais. Arrumou o saxofone, colocou a garrafa de gin no lixo, o copo no lava louças e seguiu cambaleando para o quarto de dormir. Estendeu-se na cama e com os olhos a fecharem-se na sonolência do álcool ainda teve tempo de dizer para consigo: “Tenho de ver mais vezes o pôr do sol”.

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