Al-Mu’tamid, o Rei Poeta de Beja - Corrigido
Aos olhos do comum mortal, ou se nasce para as artes e manifestação de sentimentos, ou para uma carreira militar carregada de batalhas e pelejas sanguinárias. Mas ele provou o contrário deste axioma. Al-Mu’tamid foi o mais delicado poeta e homem erudito, e o mais feroz guerreiro nos campos de batalha do sul peninsular, onde foi de Governador de Silves e Rei de Sevilha.
Esta fascinante figura histórica ainda hoje é bastante recordada em Portugal, Espanha e Marrocos, embora ainda muito aquém do que a sua real dimensão exige. Ao nível da condição de um personagem mítico, Al-Mu’tamid traçou uma existência tão repleta de acontecimentos de tanta e diferente ordem, todos eles de elevada monta, que quando observamos o fio dessa vida mais parece estarmos a falar de um romance, de uma lenda, ou de uma existência divina. Nada mais errado. Esta é a vida trágica, mas heróica; magnificente, mas sensível; benévola mas irascível, de um príncipe poeta que se fez Rei.
Abt-l-Qâsim Muham- mad Ibn Abî Amr Abbâd Ibn Muhammad Ibn Ismail al-Lahmi al- Zafir Bihaul al-Lâh al-Mu'ayyad bi-llâh Al-Mu’tamid ala al-lah, ou simplesmente Al-Mu’tamid, nasceu em Beja, em Dezembro de 1040, cidade onde viveu até aos 11 anos de idade. O jovem príncipe era o segundo filho do príncipe Abbad Al-Mutadid, o futuro Rei da Taifa de Sevilha, sendo a sua mãe, muito provavelmente, uma berbere bejense pertencente ao harém do seu temível pai que, à época, ainda era o príncipe que governava Beja em nome do seu avô Isma'il, ibn 'Abbâd, suserano de Sevilha.
Foi nos braços desta mulher que o jovem recebeu a educação e os ensinamentos que, possivelmente, lhe talharam a veia da vida. O futuro e brilhante erudito foi baptizado com o nome do avô, Abu Al-Qasim Maomé, famoso líder político e militar, e igualmente homem da poesia, e recebeu o título honorífico Almoaíde Bilá. De acordo com o grande estudioso e profundo conhecedor da história do Rei poeta, e também ele criador da mesma arte, Adalberto Alves, no seu livro Al-Mu’tamid Poeta do Destino, da Assírio & Alvim, 2004, “Beja era, nessa altura, uma cidade de notável prestígio económico, político e cultural, como asseguram as fontes coevas, embora já tivesse perdido alguma da importância que havia tido na época califal”. Esta Beja, contemporânea do jovem príncipe, era parte da Taifa de Sevilha, constituindo-se como a mais importante cidade ocidental do poderoso reino Andaluz.
A este propósito, o Professor e arabista António Dias Farinha, no seu discurso Na Evocação de Al-Mu'tamid, Poeta Árabe de Beja, proferido durante conferência sobre o Rei poeta havida no Salão Nobre da Câmara Municipal de Beja, em 25 de Maio de 1985 (Separata do Arquivo de Beja II Volume, 2ª Série) refere que “a história de Beja foi de grande brilho em diversos momentos. O seu nome herdado de César e afeiçoado pelos árabes foi assumido pelos portugueses no respeito pelo devir cultural que o povo sabe honrar mesmo durante as crises que permitem os ajustamentos sociais periódicos. Durante um período de cerca de cinco séculos, em época imediatamente anterior à portuguesa, Beja fez parte do Andaluz, o território da Península Ibérica ocupado pelos Árabes e Muçulmanos. A cidade que viu nascer al-Mu'tamid, era então uma das maiores urbes árabes da Península. As artes eram cultivadas com esmero. Ficaram célebres as danças e os cantos mouriscos de que temos referências até ao século XVI. Entre todas as qualidades literárias avultava a poesia (…) Foi nesse ambiente que os talentos poéticos de Al-Mu’tamid se revelaram”.
A bruma dos tempos encarregou-se fazer desvanecer os primeiros anos do futuro poeta. Nos escritos antigos nada consta sobre os seus primeiros anos de vida, em Beja. Porém, nota Adalberto Alves, “Leonel Borrela fez uma reconstituição conjectural da Mesquita Aljama da cidade, onde actualmente se encontra a Igreja de Santa Maria. Do lado direito visualiza-se um pormenor do que seria a Casa dos Corvos ou Casa de Aladino, que constituía um dos alcáceres dos emires da cidade”, onde muito possivelmente Al-Mu’tamid terá nascido e cujos entornos haverá calcorreado pela mão da mãe, durante os anos que passou na sua cidade natal.
Acrescenta Adalberto Alves que, “como vestígio de tal Paço, que havia sido durante séculos, solar dos governadores árabes da cidade, existia uma vetusta construção, ao lado da actual igreja de Santa Maria, sucessora da antiga mesquita-aljama. Todavia, tal palácio, como tantos outros edifícios do período árabe, veio a ser vítima da sanha destrutiva da administração da cidade, que malbaratou muito do património construído de Beja, entre finais do século XIX e princípios do século XX”.
De acordo com Maria João Cantinho, autora, ensaísta e poeta, no seu artigo Al-Mu’tamid: o rei-poeta de Sevilha, para a Revista Caliban, de Fevereiro de 2020, o pai do jovem bejense, também ele poeta, era um “homem muito ambicioso e com fama de guerreiro cruel e sanguinário.” Foi o responsável pela tomada de diversas praças e reinos vizinhos, tendo sido criado pela sua mão “o reino mais poderoso do Al-Andaluz, designado por Reino Abádida, o qual desde o Sul de Portugal até ao estreito de Gibraltar”. O seu forte exército somava conquistas e vitórias sem significativas dificuldades. Até tentar apoderar-se de Silves. Segundo a autora foi necessária toda uma década de fortes batalhas e arreigados combates para que o Rei conquistasse a cidade algarvia. Talvez pelo elevado preço que se viu obrigado a pagar por essa conquista, e já com a ajuda do seu filho nas duras campanhas, foi justamente essa a cidade que escolheu para oferecer ao príncipe como posto para o seu governo, em 1053, contava o jovem com 13 anos.
Neste sentido, refere Adalberto Alves, que “apesar da mão de ferro de seu pai e do facto de não estar inicialmente destinado a governar, aquele proporcionou-lhe uma esmerada educação política, guerreira e literária. Cedo foi adestrado na arte da diplomacia (…) Aos 11 anos é nomeado governador nominal de Huelva e aos 13 recebe ordem do pai para ir assediar Silves, que acaba por ajudar a conquistar. Aí vive os descuidados e quase míticos anos da juventude, como senhor da cidade”. É em Silves que Al-Mu’tamid inicia o seu despertar para as artes. Mas o mundo que se lhe abriu trazia muito mais do que isso. Acrescenta Maria João Cantinho que o Jovem adolescente “fez-se rodear de poetas e sábios do Al-Andaluz”. A nata da exclusiva sociedade local estava às suas ordens. Segundo a estudiosa, o príncipe era um adolescente “sensual, epicurista e amante do luxo”. Associando os seus gostos às suas possibilidades, era seguro que Al-Mu’tamid se entregaria, desde cedo, “a uma vida de faustosos excessos”.
Uma das novas e mais intensas amizades que o príncipe bejense trava em solo silviense é com o poeta muçulmano Ibne Amar (1031-1086). Nove anos mais velho do que Al-Mu‘tamid, o também poeta, algarvio (natural de Shannabus, actual Estômbar), de classe baixa, muito ambicioso e aventureiro, dotado de grande talento e inteligência, viria mais tarde a revelar-se um astuto traiçoeiro. Em Silves estudava literatura com vários mestres, e ganhava o seu sustento vagueando em busca de bens e serviços em troca do seu talento poético.
Lembra Maria João Cantinho que se tornaram “famosas as noites de Silves, no célebre Palácio das Varandas, que originaram os primeiros poemas de Al-Mu‘tamid, envolvido num ambiente de luxúria e prazeres, mantendo sempre por perto o seu amigo predilecto Ibn ‘Ammâr. O poema «Evocação de Silves» é um importante testemunho desse período.” Contudo, e apesar das mulheres se estarem sempre presentes, a luxúria do príncipe não se circunscrevia, apenas, ao sexo feminino. A escritora brasileira Camila Fernandes, refere que “Al-Mu’tamid era um amante apaixonado por mulheres, mas também foi capaz de amar um homem”. Segundo a investigadora, o amor de Al-Mu’tamid por Ibn Ammâr resultou no romance mais famoso, e também no mais trágico da história do Al-Andaluz. Depois de designado pelo pai para governar Silves, Al-Mu‘tamid, fez de Ibn Ammâr vizir do seu Governo; um género de ministro conselheiro. Camila Fernandes relata uma história sobre a relação dos dois poetas, quando, “após uma noite de vinho e poesia, o seu afecto o levou a declarar-se a Ibn Ammâr, dizendo-lhe: “Esta noite dormirás comigo no mesmo travesseiro.”
Contudo, mesmo no século XI, as notícias corriam depressa. E o seu austero pai, Al-Mutadid, o Monarca de Sevilha – conta Maria João Cantinho – “bastante desagradado com os rumores que ouvia sobre o comportamento do filho e tudo o que se passava em Silves, ordena-lhe que regresse a Sevilha e desterra Ibn ‘Ammâr para Saragoça”. Segundo o historiador Ibn Hayyan, (Córdova, 987/988 - 1076), o severo e todo o poderoso Rei de Sevilha morreu de desgosto depois da morte da sua filha preferida, em 1069, deixando caminho aberto para Abu l-Qasim assumir o controlo do reino. O jovem monarca adoptou o nome de "Al-Mu‘tamid". Com a morte do progenitor, e aos seus vinte e nove anos, Al-Mu’tamid reaproxima-se de Ibn ‘Ammâr, mandando-o trazer de volta do degredo a que estava votado em Saragoça, e nomeia-o para as suas anteriores funções de governador de Silves. Só depois da morte de Ibn Zaydun, ministro do seu pai, Al-Mu’tamid decide atribuir ao seu inseparável amigo o cargo de grão-vizir da cidade capital do seu reino. O poeta plebeu era agora Primeiro-ministro do reino mais fulgurante de todo o Al-Andaluz, tendo à sua disposição um enorme poder político e militar. Conta Camila Fernandes que, segundo a lenda, quando certa noite dormiam juntos na mesma cama, Ibn ‘Ammâr terá sonhado que o rei o mataria, tendo fugido. O Rei, contudo, convenceu-o a regressar, garantindo-lhe que isso nunca aconteceria. Seria mesmo assim? Já lá iremos.
O jovem Rei do poderoso califado tinha muitas mulheres, fruto do seu harém. Adalberto Alves menciona que “Al-Mu’tamid começa por ser um notável poeta do amor, como documentam os nomes das concubinas a quem dedicou versos: Uraywa, Jawhâra, Sihr, 'Umm Rabî', Widâd, 'Umm Ubayda e Mahâ”. Mas a grande paixão, e amor da sua vida, teve direito a exclusividade. Travava-se uma escrava que, conta Adalberto Alves, era propriedade de “um obscuro arreeiro chamado Rum, e terá sido descoberta pelo príncipe num passeio pelas margens de um rio [o Arade e não o Guadalquivir, como durante muito tempo se considerou] onde se conta ter sido ela - Itimad al-Rumaykya - capaz de completar, primeiro que Ibn Ammâr, um verso que, naquele preciso momento, lhe havia sido proposto por Al-Mu’tamid para finalização.” Foi uma conquista relâmpago do coração do Rei, por parte da escrava. Numa ascensão social quase imediata, chegou ao píncaro do reino. “A rainha Itimad, a mais especial entre todas as amadas de Al-Mu'tamid, acompanhá-lo-á em toda a sua atribulada existência, até ao fim dos seus dias. De grande beleza e inteligência (…) possivelmente por causa do ciúme motivado pela estima entre o marido e Ibn Ammâr, será sempre inimiga deste, desempenhando um papel não negligenciável no seu fim trágico.” Já lá chegaremos.
Apesar de todo o brilho da corte de Sevilha, os tempos estavam prestes a mudar. “Com a deterioração do Califado de Córdova, o Islão Peninsular perde força aglutinante, mostrando-se com nitidez as contraditórias pulsões que no seu seio se debatiam. Entre convertidos, árabes e berberes far-se-á a partilha de poder e território num generalizado ambiente de guerra civil. Daí surgem os turbulentos e, em geral, precários reinos partidários ou de Taifas do primeiro período, destinados a uma efémera existência de sessenta e quatro anos, com início em 1031 (…) Entre as razões da queda do Califado de Córdova, deverão salientar-se, para além da já mencionada heterogeneidade do tecido social, a dissolução da ortodoxia religiosa e a hipertrofia centralizadora da capital: [Córdoba] não correspondia já às necessidades de uma capacidade efectiva de controlo administrativo e militar de todo o território andaluz em finais do século X.”
É neste contexto que o Rei poeta toma as rédeas do seu Governo. Um dos últimos califas do Al-Andaluz. E “os últimos califas, de facto, pouco mais são do que títeres, mantidos graças a uma pesadíssima máquina administrativa e militar. (…) O Andaluz, enfraquecido, caminhava para o ciclo final da sua deslumbrante história. Córdova, a magnífica, trazia dentro de si o insidioso veneno da contradição e divisionismo”. Apesar de tais vicissitudes, o Rei estava disposto – e conseguiu – fazer da “Taifa de Sevilha, o mais atractivo Andaluz, já que sua corte era solar de poetas, pensadores, cientistas e teólogos que, todos eles, viviam à sombra do generoso mecenato do seu soberano.”
Mas o clima interno da Taifa de Sevilha, sobretudo ao nível das alcovas reais, também estava longe de apaziguado. “Analisando cuidadosamente os versos dos dois poetas, alcança-se que Ibn Ammâr, a certa altura, ficou saturado” da possessividade que o Rei exercia sobre si, “do caminho que tomava a política externa do reino e, sobretudo, da hostilidade e poder do lobby que contra ele se formara na corte. (…) Al-Mu’tamid estaria consciente de um certo desequilíbrio e desencanto no relacionamento com o seu vizir e amigo de juventude. O rei-poeta, por vezes, apesar da sua bondade e genuína amizade, era presa de cóleras que humilhavam Ibn Ammâr.” Este, por várias outras “vezes traiu o rei e amigo (…) [mas] Al-Mu’tamid soberano magnânimo perdoou, muitas vezes, o seu companheiro da juventude (…).
Todavia, os muitos inimigos que Ibn Ammâr havia criado conspiravam contra a sua vida e, utilizando um mal-entendido a propósito da escrita de uma carta da prisão, fizeram crer ao soberano que aquele, uma vez mais, lhe mentia. Convencido de nova traição, num acesso de raiva incontida, Al-Mu’tamid vai ao cárcere e golpeia com uma acha, até à morte, o amigo que tanto prezara. Cumpria-se, deste modo, uma onírica premonição de Ibn Ammâr”. O Rei ordenou que se sepultasse o seu amigo no próprio palácio real de al-Mubârak, junto à Porta da Palmeira, em Sevilha. “Com a morte de Ibn Ammâr, Al-Mu’tamid aproxima-se mais do seu próprio fim político. Só a partir de então toma real consciência dos riscos que corre e da necessidade de uma mudança de estratégia: tarde demais, como veremos”.
Não obstante as suas importantes funções de monarca, o Rei bejense nunca deixou de parte a sua obra poética. A investigadora Maria João Cantinho salienta que a sua poesia “integra-se na poesia árabe, no estilo clássico da qasîda, revelando um perfeito domínio do idioma e da utilização de todas as suas potencialidades com ímpar mestria. Filho e neto de poetas, e educado numa corte de intelectuais e literatos (…) o jovem príncipe cedo encontra uma voz própria”. Usando uma linguagem simples e directa, com uma expressão perfeitamente adequada à manifestação dos sentimentos, o poeta afasta-se do mero jogo formal ou retórico da poesia. “Pelo seu tom confessional e autêntico, os seus poemas constituem um espelho da sua própria vida”. Se a sensualidade e o amor são temas fortes nas diversas fases da sua história, no final da sua obra essas características quase desaparecem, passando o autor a valorizar uma “dimensão mais espiritualizada e contemplativa da vida, em que a poesia é mais elegíaca”, ou seja, mais lúgubre e dolorosa.
O rumo face ao futuro do Andaluz seguia inexoravelmente o seu curso. Os cristãos tiravam proveito de uma estratégia concertada na conquista peninsular, e também colhiam frutos da desagregação política, religiosa e social das taifas muçulmanas. Adalberto Alves acrescenta que “esgotados os cofres do Estado, para poderem suportar os [dispendiosos] tributos [aos cristãos] os soberanos taifas recorrem a pesados impostos (…) o que contribui para a desmobilização das massas na defesa do território e para a desorganização das forças militares compostas por significativos corpos mercenários”. No seguimento deste estado de coisas, “por volta de 1085, Afonso VI, sentindo-se mais forte, envia uma missiva a Al-Mu'tamid, propondo-lhe que o reino de Sevilha fosse administrado por um conde de sua nomeação”.
O pacense responde rejeitando veementemente a proposta cristã. Na opinião de Adalberto Alves “terá sido na sequência desta carta que Al-Mu’tamid tomou, como último recurso, a decisão desesperada de enviar, em 14 de Agosto de 1085, uma missiva ao soberano almorávida pedindo-lhe ajuda para enfrentar Afonso VI.” Esta seria a derradeira deliberação a contribuir para a queda definitiva da Taifa de Sevilha. O Rei estava cercado a Norte pelos cristãos, e a sul pelo reino berbere. Qual o menos confiável? Depois da decisão de Al-Mu'tamid, conclui Adalberto Alves, que “o soberano berbere satisfaria por três vezes (1086, 1088 e 1090) o apelo do rei-poeta, tornando-se, do mesmo passo, ciente do insustentável da situação” do Andaluz”. Tâshfin dá-se conta de que os soberanos da Península estavam a incorrer em duas “infracções à lei islâmica: a cobrança ilegal de impostos e a vassalagem aos cristãos.
No terceiro envio do seu exército (…) Ibn Tâshfin mostra-se decidido a pôr cobro à situação. Al-Mu'tamid tecera a sua própria derrota ao solicitar tal auxílio. Os rudes e integristas almorávidas, vindos dos confins do Sara, depois de se assenhorearem do Magrebe, têm agora o Andaluz ao seu alcance.” Diga-se que os homens que viajaram de Sul para auxiliar o Rei poeta eram, à imagem de outra definição de povos peninsulares, noutro ciclo histórico, verdadeiros bárbaros - porque rudes e incultos - sem quaisquer pontos de contacto com a valorização cultural e a fruição da vida e dos seus encantos a que os reinos árabes peninsulares estavam habituados.
Teria o Rei bejense ignorado a situação explosiva do seu reino enquanto esta se aproximava a velocidade cruzeiro? Deixaria excessiva responsabilidade nas mãos do seu amigo poeta que tornara vizir e condutor do reino? Acordaria demasiado tarde, e já sem nenhuma solução a Norte nem a Sul da Taifa sevilhana? Estaria consciente do que viria a suceder-lhe? “Dizem os contemporâneos que Al-Mu'tamid, desde sempre teria alguma consciência dos riscos que esse socorro [a Sul] envolvia, uma vez que, advertido pelos seus conselheiros, teria proferido a célebre frase: «antes condutor de camelos em África do que porqueiro em Castela». Não restam dúvidas de que Yûsuf, nas suas duas primeiras vindas à Península tem ocasião de se aperceber das riquezas andaluzas e também da fraqueza e do desentendimento dos reinos taifas”. Assim, e no seu terceiro auxílio a Sevilha, as tropas almorávidas “após forçarem a deposição do rei de Granada, apoderam-se, um por um, de quase todos os reinos taifas”.
No que diz respeito às políticas de governança do reino, Al-Mu’tamid apenas estabeleceu o alargamento das suas fronteiras “para sul e leste à custa do território de outros reinos de taifas, sendo de destacar a conquista da prestigiada Córdova, antiga capital do Califado. Assim, o seu reino chegou a englobar o Algarve e grande parte do Alentejo.”
E qual o peso do seu grão-vizir na administração do reino? “Se Ibn Ammâr era extremamente astuto como homem de estado, essa astúcia revelou-se, todavia, inconsequente no traçar do rumo da política externa que seguiu por si, enquanto grão-vizir. Na verdade, foram desperdiçados meios e energias contra os outros reinos muçulmanos, em vez de os empregar para manter em respeito Afonso VI. Assim, foi crescendo a fragilidade do reino abádida e do Al-Andaluz em geral.” Na opinião do historiador “o rei falhou na avaliação do contexto histórico do seu tempo, só tarde se apercebendo de que a salvação do Andaluz e do seu reino passava pela unidade e coesão de todo o bloco muçulmano.” O Poeta terá sido mais atento à fruição intelectual do que aos destinos do reino. Em bom rigor, foi para isso que foi educado. Possuidor de uma enorme “cultura literária, filosófica, científica e até musical. Essa realidade espelha-se na formação humanística que deu aos filhos que, cada um à sua maneira, brilharam em diversos aspectos das artes e do saber.
Numa reacção demasiado tardia, pouco “antes da tomada de Sevilha, em Setembro de 1091, Al-Mu'tamid, em estado de desespero, volta-se, então, para Afonso VI, seu antigo aliado, pedindo-lhe socorro. Todavia um esboço de ajuda não chega a surtir efeito, e Al-Mu'tamid, traído internamente, após heróica resistência pessoal, acaba vencido”.
Já o vimos a viver de luxo, opulência e sedução em Silves; já o observámos a escrever os mais belos versos em honra dos seus amores; já o olhámos na transformação da corte de Sevilha. Mas ainda não o notámos em acção militar. A este propósito, conta Adalberto Alves que, “segundo os coevos, fez tudo por perecer no campo de batalha, de modo a evitar ser feito prisioneiro. Mas nem a falta de armadura, que propositadamente retirou, lhe trouxe a morte libertadora da humilhação e das penas do cativeiro (…) ○ genealogista do século XI, Abû Muhammad al-Rushâti, conta que na luta «pereceu um número incontável de peões e que o cavalo que [Al-Mu'tamid] montava foi ferido com um golpe de lança, inclinou-se para a frente, e Al-Mu’tamid caiu. Um combatente aguerrido das suas hostes ofereceu-lhe outro cavalo, Al-Mu’tamid montou nele e continuou a bater-se, como um valente, no campo de batalha, causando grande mortandade».”
Tudo isto se terá passado nos arrabaldes de Sevilha. E justamente ali ao lado, pouco tempo depois, segue o seu penoso destino de prisioneiro. Não é difícil imaginar os sobreviventes da sua corte, despedindo-se do monarca, com lenços brancos nas margens do Guadalquivir. “Passada a foz do rio, as barcas rumam a Tânger onde virão a fundear. A leva de prisioneiros é transportada para terra e, depois de curta estada, dirigem-se primeiro para Tagrart (Mequinès) onde estancia por vários meses. Mais tarde, por ordem de Ibn Tashfin os cativos são encaminhados para Aghmât, passando por Marráquexe. Aí passará o poeta os quatro últimos anos de vida que lhe restam.”
Para os estudiosos do Rei poeta, inicia-se neste momento a terceira e última fase de Al- Mu'tamid. Qual terceiro acto de uma quase pura tragédia grega. “Nesse tempo derradeiro de exilio e sofrimento, Al-Mu’tamid vai fazer da reflexão sobre os caprichos do destino o tema mais tocante da sua obra. Numa primeira fase de regime menos severo de prisão, o poeta ainda crê num possível regresso e, quem sabe, na reconquista do trono, graças às noticias que recebe sobre a revolta de um dos seus filhos 'Abd al-Jabbâr, em 1093. Porém, tal sublevação fracassa e vem a ser esmagada, após alguns meses de resistência em Arcos. Yūsuf, alegando que «se o leãozinho rugira haveria que acautelar-se com o leão», põe Al-Mu’tamid a ferros até à morte. São deste período os poemas mais pungentes e de tom elegíaco. Nesses anos finais, sempre agrilhoado e tendo completamente perdido a esperança, aguarda, com grande dignidade, a morte libertadora. No cativeiro o poeta conhece a extrema miséria e a família tem de executar as mais humildes tarefas para sobreviver com dificuldade.”
Nos seus versos descreve a “precaridade da vida e da condição humana, do contraste entre o que fora e aquilo a que se vê reduzido, da saudade dos entes queridos que morreram. Sofre sobretudo com a perda da liberdade e com a penúria que não lhe deixa lugar para a prática do mais pequeno acto de generosidade”. O Rei era um inveterado mecenas. Sobre este tema, conta-se um famoso e demonstrativo episódio aquando da sua chegada, enquanto prisioneiro, a Marrocos: em Tânger surgiu-lhe um poeta cego, que lhe declamou alguns versos, rogando-lhe por um donativo. O pouco que trazia consigo de Sevilha era um punhado de moedas. Foram todas entregues ao pobre homem. “Manteve, até ao fim, grandeza de espírito que, em certos momentos, tem contornos de serenidade estóica”. Este acontecimento não é deslocado da sua forma de ser. A par da importância da sua escrita esteve a que dedicou ao “mecenato que levou a cabo relativamente à poesia e aos saberes. Muitos foram os poetas que gozaram da protecção e generosidade de Al-Mu'tamid. (…) O Rei poeta recrutava os seus vizires dentre poetas e homens de letras, a tal ponto que al-Marrakushi refere que o número dos seus ministros literatos excedia o de qualquer outro Rei antes dele.
Os poemas derradeiros são fundamentalmente de introspecção; um diálogo do poeta com a própria alma (…) O golpe cerce que lhe rouba o último alento é a morte da bem-amada 'Itimad: sente-se acabar. Ainda assim, escreve, nas vésperas da morte, os versos que lhe servirão de epitáfio, dando de si próprio a imagem que quis que a posteridade guardasse dele. Esses versos ornamentam hoje a parede que está aos pés do seu túmulo. Morre na masmorra, em 14 de Outubro de 1095, tornando-se a sua sepultura um local de peregrinação, ainda hoje venerado por muçulmanos e homens de cultura de todo o mundo.
Al- Mu'tamid nunca se perspectivou como pretendente ao trono. Não lhe estava fadado esse destino por não ser o primogénito do Rei da Taifa de Sevilha. Porém, com a morte do seu irmão mais velho em 1057 (às mãos do seu pai, com o argumento de traição, mas cujos remorsos o acompanharam até ao fim dos seus dias), o destino alterou-lhe os planos de homem da cultura, poeta, apreciador de música e vinho, mulheres, festas báquicas e transbordantes de luxuria e lascívia. O Rei poeta herda uma sevilhana Taifa poderosa, rica e brilhante, mas que na realidade, e paradoxalmente, assistia, ela própria, quase impotente, ao aproximar, a passos largos, do fim do outrora grandioso Al-Andaluz peninsular. Foi esse fim que ditou a morte do poeta após o seu penoso degredo.
Tal como dizia António Dias Farinha, em 1985, “Beja, entalada como está pela pretendida hegemonia alentejana eborense, pelo desenvolvimento cosmopolita algarvio, pelo muro fronteiriço espanhol e pela macrocefalia lisboeta, pode e deve aspirar a centro de uma maior vida regional pelas potencialidades do seu vasto território, pela situação geográfica e pelas tradições que lhe conferem dignidade pouco comum entre as maiores cidades portuguesas”.
Neste sentido, é de lamentar que a maioria dos percursos e rotas propostas e levadas a cabo por diversos organismos públicos nacionais – financiados com fundos europeus – não incluam Beja nos seus programas. Fica, desta forma, amputado o percurso de vida de um dos três maiores vultos das letras nascidos em solo português (mesmo que antes da sua constituição formal), a par de Camões e Pessoa. De resto, Fernando Pessoa contribuiu, no fim dos anos de 1920, para a salvaguarda do legado cultural do próprio Al-Mu’tamid. O poeta dos heterónimos terá começado por ler o seu colega traduzido para a língua inglesa (o Rei poeta não usou heterónimos, contudo as três fases da sua vida reflectiram três autores inteiramente distintos na sua poesia), e passou a difundir o legado do bejense, nomeadamente em textos publicados no verão de 1928 n’O Notícias Ilustrado no qual, segundo Adalberto Alves, subscreve uma clara revindicação do legado arábico-islâmico em Portugal.
O mesmo autor, no livro Roteiro Literário de Al-Mu’tamid, (C.M.B., 2023), sublinha que “hoje, mais do que nunca, viaja-se ao encontro das culturas. Não só as do presente, mas também as do passado”, destacando, para o caso, a riqueza da civilização islâmica. E propõe “encontrar, por exemplo, na região de Beja, o rasto desse tempo áureo em que pontificou a fama e o mito do grande rei, poeta e homem de cultura que foi Al-Mu’tamid ibn 'Abbâd, natural da cidade, governador” de Huelva e Silves “e soberano de Sevilha.
Al-Mu’tamid, o maior poeta bejense e luso-árabe, é considerado internacionalmente uma das glórias da literatura universal. A sua fama lendária derramou-se até aos mais longínquos confins do mundo árabe. Isso explica que versos seus estejam incluídos em obras tão incontornáveis como, por exemplo, o Trésor de la Poésie Universelle (Gallimard-Unesco, 1958) ou as Mil e Uma Noites. Como se alcança dos seus versos, ele era versado não só em História e Genealogia mas também em Filosofia - cita Aristóteles e Hermes -, na Música - a sua paixão pelo alaúde e pela cítara, assim o indica - na Astronomia - menciona constelações como Virgem, Leão, Gémeos, Oríon e Pléiades, na cultura helénica Beta e Gama, na Linguística cita Al-Jalil e Abû Hanffa, e na Ornitologia quando identifica certeiramente, as aves que rondam o seu degredo como os corvos, os cortiçóis e as rolas. Também por outros ramos da ciência se terá interessado o seu espírito, aberto a todos os saberes”, como a Geografia e a Astrologia, ou a topologia.
Sobre ele escreveram penas maiores, como as de Alexandre Herculano, Fernando Pessoa, Almeida Garret, Soares de Paços, Al Berto, ou o estudioso Reinhart Dozy. Os seus versos foram cantados entre outros tantos, por Janita Salomé ou Paco Ibañez.
O triste fim de Al-Mu’tamid comoveu e inspirou, até aos dias de hoje, gerações, não apenas do Mundo Árabe, mas de todos os continentes, que continuam a ler os seus versos e a inspirar-se nele, quer para a escrita e investigação, quer para a pintura, a música ou o cinema. O Mausoléu em Aghmât, onde ○ Rei-poeta se encontra sepultado, e o Memorial em Beja, na sua terra natal, guardam a memória da sua lenda e dos seus versos para o presente e para a eternidade. No livro de visitas do seu mausoléu constam os testemunhos comovidos de um turismo cultural que, de todas as partes do mundo, continua a acorrer a Aghmât para venerar a sua memória. Deverá ser esse, ainda hoje, o motivo maior de orgulho da sua terra natal Beja tem, no que ao Turismo Cultural respeita, uma mina de ouro intelectual e económica ainda quase inteiramente por explorar mas que poderá vir a revelar-se decisiva num futuro próximo, para desenvolvimento sustentado da sua região e do País.” Oxalá – ou in xā,llāh, como diria Al-Mu’tamid (em português, “queira Deus ") – que Beja saiba destacar de forma consistente, séria e continuada figuras como esta, a par da de Mariana Alcoforado, por exemplo, a fim de poder constituir-se como pólo central de um diferenciador turismo cultural, ao mesmo tempo que engrandece os seus filhos, dando motivos aos actuais para sentirem orgulho da história da sua cidade.