Há vidas assim...

Os anos passaram e com eles veio o envelhecimento, mas o amor, esse nunca esmoreceu. Quando lhes propuseram a ida para o lar recusaram.

Ele e Ela conheceram-se numa esplanada de café. A procura, em simultâneo, da mesma mesa rapidamente passou da disputa à decisão de a partilharem.  Ela transportava consigo dois casamentos falhados e um filho e ele outros dois casamentos e dois filhos. Esse dia foi o primeiro de vários encontros e deles nasceu uma paixão galopante que, com o tempo, se transformou num amor intenso feito de sensualidade, desejo, amizade, respeito e partilha dos mesmos valores políticos e cívicos. Decidiram viver juntos num dia 25, número mágico para os dois e em cada dia, mês e ano que partilhavam uma vida em comum o amor aumentava.

Tinham por costume, todos os meses, no dia em que se tinham conhecido, tomar café na mesa da esplanada em que pela primeira vez sorriram um para o outro e os olhos de ambos disseram: “és o amor da minha vida”. Apesar de vidas já feitas e desfeitas na data em que se conheceram, juntos construíram um novo caminho. Ela singrou na sua vida profissional, tornando-se uma das melhores, ele abraçou a profissão original ao mesmo tempo que se tornou romancista, um sonho de uma vida. Viajaram pelo mundo e amaram-se em cada recanto e em cada esquina das cidades que palmilharam abraçados ou de mão dada.

Os anos passaram e com eles veio o envelhecimento, mas o amor, esse nunca esmoreceu. Quando lhes propuseram a ida para o lar recusaram. Ela tinha dificuldades de locomoção, ele lia cada vez com mais dificuldade. No entanto, enquanto tiveram forças mantiveram um ritual diário. De manhã, ele, amparando-a, conduzia-a até à banheira onde cada parte do corpo desnuado e molhado era uma redescoberta. A cada afago ela sorria e os olhos falavam como da primeira vez em que se tinham conhecido. Depois do banho era o pequeno almoço, que ele preparava, tomado na mesinha da sala, junto à janela entreaberta por onde entrava o sol da manhã.

Ela ficava a ler e ele saía. Gostava de deambular, de manhã, pela cidade, sentindo-lhe os cheiros e observando o frenesim da movimentação das gentes que, em magotes, saiam dos diferentes transportes em horários precisos. O passeio terminava no mercado onde no meio das compras se destacavam os cravos e as rosas vermelhas que, mais tarde, iriam decorar a mesa da sala.

O almoço era o tempo das notícias e da conversa sobre o sonho que um dia tiveram de transformar o mundo e da desilusão que cada presente lhes foi trazendo. À tarde era o tempo da leitura. Ela, ainda com voz firme, lia-lhe os livros que eram dos dois, que amavam e que tinham oferecido um ao outro. Era como se a cada palavra, a cada frase lida e relida, uma nova emoção surgisse. A cada paragem determinada pelo fim do período do texto ela olhava para ele e ele para ela, os olhos sorriam e as mãos entrelaçavam-se num afago meigo e doce.

Três batidas na porta ressoaram pelo prédio, mas de dentro de casa ninguém respondeu. A vizinha acorreu sobressaltada. “que sim senhor, que havia dois dias que não via o senhor, o único que saía, pois, a senhora estava sempre em casa”. Forçada a porta, os bombeiros entraram e no quarto de dormir, por entre rosas e cravos vermelhos, ele e ela, de mãos dadas, jaziam deitados ao lado um do outro e uma música, em modo repetitivo, fazia-se ouvir baixinho: “…hoje é o primeiro dia do resto da minha vida…” [das nossas vidas]. (1)

(1)   – Verso da música de Sérgio Godinho, “O Primeiro Dia”.    

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