As Vítimas do Capital
Porque é que aqueles que tudo produzem têm vidas tão difíceis, enquanto os que só têm por tarefa mandar os outros produzir vivem sempre sem qualquer dificuldade?
Ela acordou a meio da noite sobressaltada. Teria sido pesadelo? Não se lembrava. Fechou os olhos para retomar o sono, mas este não veio. Levantou-se lentamente para não acordar o marido que a seu lado dormia e, pé ante pé, entrou, uns metros à frente, no quarto onde o seu filho se encontrava totalmente abandonado nos braços do Morfeu. Aconchegou-lhe a roupa, saiu de mansinho e passou à cozinha. Preparou um chá, sentou-se e os pensamentos que a invadiam há duas semanas surgiram de novo. Tinha trinta dias para organizar a sua vida. O patrão da empresa onde trabalhava há quinze anos tinha sido claro: os despedimentos eram inevitáveis, tinha muita, pena, mas não havia alternativa, a empresa era inviável. Ela não sabia se esta conversa correspondia à verdade ou não. O que sabia, e com ela todos e todas que trabalhavam na fábrica, é que os lucros de décadas tinham feito o patrão milionário, que os salários eram de miséria e que muito pouco capital tinha sido investido na modernização da produção, apesar dos subsídios recebidos da União Europeia com o aval do governo.
E agora, com 45 anos, quem a iria empregar, ela que toda a vida tinha trabalhado no setor têxtil (costureira da era mecânica da produção em série). O salário já era baixo, o subsídio de desemprego mais baixo seria. Já tinha sondado o Centro de Emprego no sentido de perceber se haveria possibilidade de voltar a trabalhar. O senhor que a atendeu foi muito simpático, mas só lhe falou de empreendedorismo, que a solução para o seu problema era criar uma pequena empresa, que só os malandros é que não vingavam na vida e que ela tinha de pensar positivo. Talvez aquilo que parecia ser uma desgraça, o seu despedimento, fosse, afinal, a sua sorte. O que era preciso era sair da sua zona de conforto e ser empreendedora e como parecia ser uma pessoa inteligente não teria dificuldade em ter êxito como empresária.
Ela lembrava-se que ao ouvir esta conversa tinha pensado em duas das suas amigas que, ao embarcarem nesta treta do empreendedorismo, tinham aberto duas pequenas empresas. Uma delas, uma loja de roupa para criança e a outra uma pequena oficina de costura. Agora estavam as duas desempregadas com as empresas fechadas e uma dívida ao banco que não sabiam como pagar, o que as tinha deixado à beira da miséria total.
Mas a grande preocupação de Maria João não era só a questão do emprego. O que a trazia todos os dias com um nó na garganta e um vazio no estômago eram as contas que iriam vencer todos os meses. Tudo isto parecia tão mau que não tinha tido coragem de contar ao marido o despedimento anunciado. No momento, dois encargos cobriam praticamente o seu ordenado: as prestações da casa e do carro. A alimentação, roupa e alguma despesa extra, como a necessidade de comprar um eletrodoméstico, entretanto avariado, consumiam a totalidade do salário do marido. E agora, só com um salário, como seria o futuro da sua família?
Estava nestes pensamentos quando sentiu o marido aproximar-se. Olhando-o nos olhos, não foi mais capaz de silenciar a razão, mais que provável, porque tinha acordado. Após um momento de silêncio abraçaram-se e, assim, regressaram ao quarto de dormir. Enquanto tentavam voltar ao sono nos braços um do outro, Maria João ainda atravessou o silencio da noite com a pergunta que não a deixava: “Porque é que aqueles que tudo produzem têm vidas tão difíceis, enquanto os que só têm por tarefa mandar os outros produzir vivem sempre sem qualquer dificuldade?”