D. Brites, Duquesa de Beja. A Mulher.
Comemorou-se no dia 8 de Março o Dia Internacional da Mulher. Foi mais uma oportunidade para revelar ao mundo aquilo que o mundo já sabe. Que a mulher é, desde os primórdios da civilização, e em todos os países que compõem o mosaico do planeta, alvo de gritantes desigualdades perante os homens. Seja na taxa de desemprego ou na remuneração auferida; nos cargos de administração ou na representação política, nos riscos de pobreza ou na violência doméstica, a mulher tem sempre um fosso de dificuldades e humilhação a separá-la do hemisfério masculino. O sítio de Internet do Jornal Polígrafo, um projecto jornalístico digital que se dedica a apurar a verdade e anular a mentira no espaço público, e de acordo com o Global Gender Gap Report, prevê que o fosso entre géneros seja eliminado apenas daqui a 108 anos. Contudo, a cada ano que passa o prazo estimado para essa equiparação aumenta. Estamos, assim, cada vez mais longe de um cenário de equivalência de direitos entre a mulher e o homem.
Também por isso, mas porque é, acima de tudo, um hino à mulher, à sua resiliência, inteligência, capacidade de gestão - e porque não - superioridade, trago hoje uma figura ímpar na história de Portugal e da Europa. Quando as diferenças entre os géneros eram ainda mais evidentes, num mundo dominado exclusivamente por homens, há seis séculos de distância. Falo da Infanta D. Brites, a Duquesa de Beja.
Escreve o historiador Casteleiro de Goes, na sua obra Infanta D. Beatriz, Duquesa de Beja 1429 – 1506, uma edição da Câmara Municipal de Beja, 2021, que “ não teve dos cronistas da época, nem dos posteriores, o merecido lugar na História: todos a referem com parcimónia, negando-lhe, talvez por ser mulher, esse direito, parecendo que para tanto não bastaram as suas raríssimas capacidades políticas e influente personalidade, porventura a mais poderosa do seu tempo”.
A Duquesa de Beja foi, acima de tudo, uma extraordinária e singular diplomata. Num mundo ainda hoje, e como vimos, cada vez mais dramaticamente inclinado para o dominante género masculino, D. Brites mostrou aos homens como era a fibra de uma mulher de excepção no fim da penumbra da Idade Média, assumindo-se como o rosto do poder no Portugal do séc. XV. No seguimento desta ideia, acrescenta Casteleiro de Goes, que “por toda a antiguidade medieval, quando [só] os homens ditavam as leis e a ordem, foram poucas as 'Donas de linhagem' capazes de ombrear com eles na condução dos negócios políticos, ao mais alto nível, de viva voz e ainda que só por via do aconselhamento, sendo ainda mais raras as que foram ousadas no exercício de poderes públicos, por mérito, quando a isso foram compelidas, o que não foi o caso desta memorável Senhora, sendo certo que as influências por si exercidas, em diferentes momentos de fereza política entre Portugal e Castela, ombrearam, em prudência e lucidez, com os melhores estadistas dessa turbulenta época.”
D. Brites (forma onomástica arcaica, da época, para Beatriz, ou seu diminutivo) nasceu em 1429. A duquesa de Viseu e de Beja, e infanta D. Brites (título que usou depois de viúva) era bisneta de D. Nuno Álvares Pereira e neta do Rei João I e de Filipa de Lencastre. A este propósito escreve Casteleiro de Goes, na supracitada obra, “pela linha de seu pai, o infante D. João de Avis, filho de D. João I de Portugal e de D. Filipa de Lencastre, D. Beatriz era bisneta de João de Gante e, por sua mãe, bisneta do condestável D. Nuno Alvares Pereira, pelo que foi através de si que o sangue do herói de Aljubarrota entrou na dinastia ali alevantada, gerando-se, assim, uma intrincada consanguinidade que breve se tornaria maldita entre as descendências dos seus patriarcas. Ligados por estreitos laços de família, os ducados de Viseu-Beja e de Bragança tinham por chefes distintas personalidades, cada uma de seu jeito, qual delas a mais indómita: dir-se-ia que os Braganças herdaram o génio do avô Nuno Alvares e Beatriz o carácter da avó Filipa de Lencastre, ambos fascinantes, ambos arrebatadores, à luz do seu tempo”.
Sem dúvida que a sua proveniência da elite da alta nobreza a ajudaria a afirmar-se no panorama do reino e na definição do mapa ibérico. Mas o seu berço dourado está longe de se constituir como a única razão para a relevância e poder que logrou alcançar. O papel histórico que desempenhou na pacificação dos países ibéricos foi o seu contributo político mais valioso.
Tia da Rainha de Castela, Isabel a Católica, e sogra do Rei D. João II, D. Brites desempenhou um papel determinante na aproximação das coroas de Portugal, Castela e Aragão. Contudo, e porque os jogos no tabuleiro político, na época, eram mortíferos, D. Brites acabaria por ver o filho mais velho, Diogo de Lencastre, assassinado em 1484, por D. João II, seu cunhado. Mas nem esta dolorosa tragédia familiar abalou a fibra, ou pôs em causa a determinação da duquesa no seu projecto diplomático, ao mesmo tempo que assegurou ao seu filho, D. Manuel, apoio na governação do ducado de Beja. Em muito a terá ajudado a sua filha, Rainha D. Leonor de Beja, que anos mais tarde colocaria no trono de Portugal o seu irmão, e filho mais novo de D. Brites, o Rei D. Manuel I.
D. Brites e o marido, D. Fernando - os primeiros duques de Beja e pais dos futuros reis D. Leonor e D. Manuel I - levaram a cabo a fundação e construção do Convento de Nossa Senhora da Conceição, um dos mais ricos e belos do sul do País, com o início das obras a ter lugar por volta de 1459, prolongando-se a sua contrução até 1503. Infelizmente - e a malfadada história tem vindo a repetir-se - em finais do século XIX e inícios do século XX, a cidade de Beja foi cenário de grandes destruições patrimoniais, sendo que do antigo convento sobreviveram apenas a igreja, o claustro, a sala do capítulo e divisões adjacentes, onde hoje funciona o Museu Regional de Beja, Rainha D. Leonor, cujo acervo é composto por consideráveis colecções de azulejaria, arte sacra, pintura e arqueologia. Anastásia Mestrinho Salgado e Abílio José Salgado, no seu livro O Testamento da Infanta D. Beatriz (Duquesa de Beja), uma edição da Associação de Municípios do Distrito de Beja, de 1988, acrescentam que foi neste mosteiro (…) que se guardou o testamento da Infanta D. Beatriz, datado de 1505,e também uma sua cópia, actualmente no Fundo Geral de Manuscritos da Biblioteca Nacional de Lisboa.” Foi de uma janela do Convento, anexo ao Palácio dos Infantes que, no séc. XVII, Mariana Alcoforado se enamorou, sem correspondência, pelo cavaleiro francês Noel Bouton, marquês de Chamilly, para quem enviou as belíssimas cinco missivas de amor ardente que dariam origem às famosas “Cartas Portuguesas”.
A historiadora Maria Odete Sequeira Martins, na sua obra A Duquesa de Beja - Poder e Sociedade, das Edições Colibri, de 2020, refere, a este propósito, que “quem pudesse ter visitado o palácio de Beja e obtido permissão para deambular por salas, por salões e pelas demais dependências, ficaria decerto extasiado perante as diversas formas de riqueza que diariamente conviviam com D. Brites. Desde as alcatifas vindas de Castela e do Levante, que aqui e além descobriam o pavimento revestido de azulejos valencianos, as múltiplas tapeçarias manufacturadas em Londres ou em Arras (de que a Duquesa levara 12, por ocasião do casamento), que ornamentavam as paredes e tornavam o ambiente a um tempo distinto e confortável, sobressaindo uma, de grandes dimensões, onde se narrava a história dos profetas. Face à abundância dos ‘cercamentos’ de cama, provavelmente de acordo com a dependência, e de porventura com a ocasião, assim se colocariam os de cetim azul com esteios de veludo carmesim, os de damasquim pardo ou os de sarja.
De entre o mobiliário avultavam as arcas e os arcazes, de primordial importância no acervo de uma casa, pela multiplicidade de funções que ofereciam. Nelas se aconchegavam os objectos de adorno, as peças de indumentária, se guardavam as roupas de casa, os livros, a loiça, e poderiam igualmente servir de leito, como bem notou Oliveira Marques. D. Brites dispunha de setenta e nove.
Havia também os cofres, em âmbar, marchetados de marfim, provenientes da Alemanha, da Flandres, de Aragão, de Pisa, onde a Duquesa guardaria as muitas jóias de que dispunha, tais fossem uma mão cheia de ouro, numa outra; uma mãozinha de ouro cheia de âmbar; um anel de sinete; um firmal de ouro com uma figura de donzela esmaltada; uma cadeia com duas pontas de ouro e esmalte preto; uma safira muyto grande encastoada em ouro; um anel de ouro, grande, com uma safira azul; um outro anel de ouro com safira incolor e olho-de-gato e ainda um outro, pequeno, com um diamante; cinco amuletos, sendo três de pérolas e dois de ouro; um castão de ouro esmaltado contendo uma pérola; uma sobrecopa de ouro, com esmaltes verdes e brancos, em forma de tenda, em que em torno da franja brilhavam seis rubis, encastoados em ouro, uma safira, também encastoada, entremeadas de pérolas e todo o conjunto encimado por uma safira grande, três pérolas pendentes (…)”, e a descrição da abundante riqueza continua…
Ainda sobre a importância ímpar do Convento da Conceição de Beja, o historiador Alfredo Saramago, no seu ensaio histórico Convento de Soror Mariana Alcoforado, Real Mosteiro de Nossa Senhora da Conceição, da Colares Editora, de 1994, reforça que a Infanta “era uma mulher esclarecida, com uma visão pragmática dos acontecimentos e com uma grande facilidade para levar os factos junto das suas conveniências. Socorrendo-se da sua alta posição social, do conhecimento profundo da Corte e do reino, pôs em execução para benefício do seu instituto uma diplomacia que tinha como objectivo ajudar a construir a estrutura do Mosteiro que quis fundar.
Essa diplomacia, que ela iniciou e que deixou como prática a seguir pelas abadessas responsáveis da casa, teve como campos preferenciais a Corte e a Santa Sé, centros de poder donde emanavam as disposições convenientes para os desígnios da fundação. Se a sua acção na Corte pode ser aceite como consequência natural do lugar que ocupava na hierarquia do reino, as suas relações com Santa Sé originaram o estabelecimento de uma comunicação directa [um embaixador próprio] e que funcionou como uma diplomacia paralela à diplomacia oficial do reino (…).
D. Brites morreu com 77 anos em 1506, e viveu em Beja, nos seus Paços, em termos definitivos depois da morte de seu marido, ocorrida em 1470 (…) A sua permanência em Beja, junto ao Mosteiro, deu-lhe oportunidade de conduzir, com mão segura e com inteligência, as primeiras décadas de vida do convento (…).
A estratégia que a Infanta utilizou para que a vida do Mosteiro fosse longa assentava em três firmes direcções: privilégios e mercês dos reis; privilégios de Roma, e aceitação, com grande impacto, do convento por parte da cidade. Esta terceira condição era de importância fundamental, porque se o convento fosse considerado como uma instituição marginal à vida da cidade, sem uma comunicação estreita, feita em termos de congratulação mútua, o bom entendimento com coroa e a Santa Sé, não eram suficientes para suscitar as conveniências desejadas. Por essa razão, a Infanta antes de dirigir a sua atenção para o poder (…) tratou de ajustar o Convento à vida na cidade”, trazendo-lhe o tão necessário pão e oferecendo-lhe redenção através da fé.
Mas foi o célebre Tratado de Alcáçovas que teve a mão tantas vezes injustamente esquecida de D. Brites. Em Castela, a Rainha Isabel queria impedir o avanço das caravelas lusas ao longo da rica costa da Guiné. Estava prestes a estalar a guerra ibérica, depois do início dos descobrimentos, e a diplomacia lusa era inepta. O Rei D. Afonso V entrega a regência ao futuro D. João II e invade Castela. Se as coisas já estavam mal, em 1476, o futuro D. João II transfere a regência para a mulher e invade novamente Castela em apoio do pai, dando origem à ruinosa batalha de Toro.
Instalada a crise, realiza-se conselho régio, no Porto, sendo D. Beatriz a única mulher presente. Depois de D. Afonso V abdicar, e com o governo partilhado com o futuro D. João II, a gestão do conflito caiu num impasse. É neste momento que emerge uma figura ímpar na arte da negociação. D. Brites será a representante de Portugal no encontro que veio a decidir os termos da paz entre os reinos ibéricos.
Em Março de 1479 a duquesa, acompanhada por um limitado séquito, cruzou a fronteira em direcção ao castelo de Alcântara, onde a aguardava a sobrinha Isabel, em igualdade de comitiva, e sem exército a protegê-las. As negociações estenderam-se durante sete dias até serem alcançados vários acordos de extraordinária importância. Negociaram-se as Terçarias de Moura, que resolveram a contenda dinástica castelhana, e a paz com Portugal, impondo a Joana de Trastâmara (a Beltraneja), rival de Isabel ao trono de Castela, a renúncia a todos os títulos castelhanos, com o reconhecimento de Portugal, e celebrando-se o contrato de casamento entre Afonso, herdeiro português, e Isabel, primogénita dos Reis Católicos.
Anastásia Salgado e Abílio Salgado dão conta dos resultados dessa negociação, cuja “conferência efectuou-se na vila de Alcáçovas (…) [com o seguinte] resultado:
1 - Ratifica-se a paz
2 - O Rei de Portugal obriga-se a não usar o título de rei de Leão e Castela.
3 - Em contrapartida, também os Reis Católicos não podem usar o título de reis de Portugal
4- D. Joana (a Beltraneja), ou a Excelente Senhora, como era respeitosamente designada entre nós, não poderia usar nenhum destes títulos:
- Rainha de Leão e Castela
- Rainha de Portugal
- Rainha
- Princesa, ou Infanta, a não ser que se casasse com o Príncipe de Castela.
5 - As cidades, vilas ou fortalezas tomadas por qualquer um dos beligerantes seriam restituídas.
6 - Também seriam entregues os prisioneiros feitos por ambas as partes.”
Na geopolítica, Castela ficava com o direito de conquistar as Canárias, mas reconhecia o direito de Portugal sobre os Açores, a Madeira e Cabo Verde, tal como sobre a costa da Guiné a partir do paralelo das Canárias. O resto é história: a sul do paralelo competia a Portugal descobrir, e a norte do mesmo esses direitos pertenciam a Espanha. O tratado é assinado em Alcáçovas, a 4 de Setembro de 1479. Depois da morte do seu neto, o príncipe D. Afonso, em 1491, D. Beatriz reuniu as forças da sua Casa para defender os direitos de D. Manuel à sucessão de D. João II.
Mas os horizontes da actuação de D. Brites eram bem mais largos. Os dois historiadores acrescentam que “quanto a outras actividades desenvolvidas por D. Beatriz não podemos deixar de referir a protecção concedida a Gil Vicente, que partilhou, de resto, com sua filha [D. Leonor] a Rainha Velha, como também era chamada. Protegeu ainda a indústria de Lanifícios, em Beja, onde residiu durante bastante tempo da sua vida (…).
Maria Odete Sequeira Martins resume D. Brites como “Mulher singular, uma das maiores, mais influentes e mais temidas figuras políticas do século XV português (…) A Duquesa D. Brites nos múltiplos papéis que desempenhou: de pedra angular em que se afirmou um trono, embalado na Casa de Beja; de estratega que dialogava ou confrontava monarcas; de governadora de uma corte, que se assumia como alternativa à Casa Real; de gestora de um vasto património, que se alongava pelo Oceano; de arquitecta e cuidadora, até ao fim dos tempos, da memória da sua Família. Na aurora dos novos tempos, que se avizinhavam, a Infanta-Duquesa inscrevia-se já no Renascimento”.
D. Brites foi uma das figuras mais extraordinárias e influentes do século XV português, Foi governadora da Ordem de Cristo, e faleceu, aos 76 anos, em 1506, sendo sepultada junto do seu marido, no Mosteiro das Religiosas da Conceição, em Beja. Esta personagem histórica não deixa de ser uma bandeira da feminilidade; um marco que teima em não nos deixar esquecer que a Mulher não pode ser diminuída face ao homem. Antes pelo contrário.