Há vidas assim...

Há Vidas Assim...

Leonor

Agora era a solidão de quem se sentia um objeto decorativo. Enquanto os filhos, um rapaz e uma rapariga, estiveram em casa a vida tinha um sentido, cuidar deles.

Leonor, com os seus cinquenta anos acabados de fazer, olhava-se ao espelho do quarto de dormir. O jantar que tinha feito com tanto esmero e carinho jazia frio, por entre duas velas já sem luz, na mesa da sala junto à cozinha. Hoje tinha acalentado a esperança de que o marido viesse jantar, conforme tinham combinado por telefone a meio da tarde. E ela que tinha tanta coisa para falar, embora não soubesse bem o quê. Sentia uma profunda tristeza, associada a uma espécie de vazio, que só a custo lhe permitia prestar atenção às conversas fúteis com que as amigas preenchiam os fins de tarde na esplanada do café mais movimentado da vila. Alguns cabelos brancos já despontavam pelo meio da sua cabeleira preta, farta, que em caracóis caía sobre a face de um rosto moreno onde brilhavam dois olhos verdes. Desabotoou a camisa e dois seios ainda firmes surgiram perante o espelho. Sentiu-se bonita e sorriu, mas foi só um lampejo. No relógio da torre da igreja, perto da casa, soavam as doze badaladas anunciando a meia noite e do marido nem um telefonema nem uma mensagem. Em trinta anos de casados tinha sido quase sempre assim. A exceção foram os primeiros seis meses após o casamento onde amiudadamente era procurada como fonte e prazer, dando muito, mas recebendo pouco. Agora, nem isso. Agora era a solidão de quem se sentia um objeto decorativo. Enquanto os filhos, um rapaz e uma rapariga, estiveram em casa a vida tinha um sentido, cuidar deles. Mas eles saíram. No início vinham aos fins-de-semana, mas, com o tempo, o retorno periódico à casa dos pais foi rareando e uma enorme dor começou a instalar-se paulatinamente no coração de Leonor.

Levantou-se, deixou cair o vestido de alças que trazia, e um corpo seminu, ainda firme, revelou-se ao espelho ao mesmo tempo que algumas lágrimas caiam pela face morena, por entre as rugas que os cremes caros já não conseguiam esconder. O telemóvel tocou, estendeu maquinalmente a mão e disse: “estou”. Era o marido, que não tinha podido vir jantar e que não viria também dormir, ela que não ficasse preocupada, uma reunião urgente de negócios tinha-o obrigado a deslocar-se a Lisboa e que só agora telefonava porque tinha ficado sem bateria. Leonor desligou o telemóvel sem uma palavra, puxou para si a mala que tinha sobre a cama, abriu-a, retirou uma folha de papel dobrada que abriu lentamente. Era a cópia de um e-mail recebido pelo marido há dois dias que, por acaso, conseguiu ler e imprimir num momento de descuido deste. Com as lágrimas nos olhos releu mais uma vez o texto: “Meu querido, espero ansiosamente por ti. Ainda sinto o calor dos teus beijos. Aguardo impacientemente a tua visita. Não te esqueças, não podes faltar ao prometido”. Leonor enxugou as lágrimas, rasgou a folha de papel em mil pedaços, foi buscar a mala de viagem que colocou em cima da cama e, num misto de raiva e dor, começou a enchê-la com a sua roupa. Terminada a tarefa desceu com a mala à sala onde ainda cheirava às velas ardidas na mesa de jantar. Uma decisão firme parecia ler-se nos seus olhos: Sair de casa e iniciar uma nova vida e tentar ser feliz. Sentou-se no sofá e um conjunto de perguntas começaram, num repente, a martelar-lhe a cabeça: Para onde iria viver? Para um hotel? O dinheiro que tinha na sua conta só lhe daria no máximo para uma semana. Como se sustentaria se não tinha emprego e nunca tinha trabalhado? Que vida iria levar? Que pensariam os filhos, as amigas e os vizinhos e vizinhas da sua decisão? Seria capaz de arrostar com os olhares furtivos sobre si e as conversas à boca pequena nas suas costas? Respirou fundo, subiu de novo ao quarto, desfez a mala, abriu a cama, deitou-se, e sonhou acordada com a nova vida de que tinha desistido. 

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