“O cumprido e o adiado” - Parque Habitacional da Cidade de Beja
“As casas são uma máquina de habitar e desempenham um papel chave na construção da nossa experiência humana. Mas todas as casas falam, pela presença ou pela ausência, de outra coisa que está para lá delas. Falam disso que um humano é, matéria ao mesmo tempo sucinta e imensa, de fazer espanto”, escreve Tolentino Mendonça. Uso-lhe, ousadamente, as palavras, mais do que certas, humanas e sábias, para vos falar “do cumprido e do adiado, do sono e da vigília, do fraterno e do oposto, da ferida e do júbilo, da vida e da morte” do parque habitacional da nossa cidade.
Porque as casas, essas, também nos “falam do conhecimento que só é verdadeiro se alojar em si a consciência do que ignora hoje e ignorará até ao fim. Falam da luta pela sobrevivência, com a sua rudeza, a sua dor e tumulto, mas também da excedência que experimentamos”.
A possibilidade
do encontro, da interacção e da vivência entre pessoas são aspectos funcionais
e estruturais de uma cidade. Através da disponibilidade maior ou menor de
espaços públicos, edifícios e equipamentos, são também as cidades
multiculturais quem nos ensina a lidar com a diferença, seja ela ideológica,
étnica, racional, religiosa ou outra.
Isto leva-nos ao ponto: as cidades tudo deverão ligar e conectar, porque tudo
nelas é sinérgico.
A fragmentação urbana de Beja tem vindo a acentuar-se, com prejuízo da coesão,
do desenvolvimento e sustentabilidade. Na base estarão não só problemas de cariz
social, que ditam a diferenciação do local de residência consoante a classe e a
capacidade económica da população, mas também o abandono do centro histórico e
a degradação dos seus edifícios, a estagnação do parque habitacional, o baixo
dinamismo da nova construção, a inexistência de oferta no mercado de
arrendamento e no mercado de arrendamento acessível, o atraso nas medidas,
processos e plano de acção para a habitação social, a burocracia e entraves
inerentes ao investimento privado e à requalificação, assim como a escolha, por
parte de investidores estrangeiros, de localidades periféricas para compra de
habitação, por não nutrirem por Beja especial simpatia.
É certo que a cidade precisa de novas metodologias de diagnóstico, de participação e de monotorização, contudo, muitos dos problemas actualmente existentes estão, há muito, identificados, carecendo apenas de resolução.
Beja tem, felizmente, de há uns anos a esta parte, um crescimento significativo da população flutuante, desde trabalhadores agrícolas, a professores, estudantes, profissionais de saúde ou colaboradores destacados por empresas privadas. Um crescimento que despoletou a procura por habitação temporária. Incapaz de dar resposta, seja por escassez de oferta ou pelos elevados valores praticados (alguns a roçar o estapafúrdio), a cidade tem visto potências novos habitantes optarem por outras localidades ou, no limite, a desistirem da mudança, não se mostrando [a cidade] capaz da retenção e fixação necessária e urgente de pessoas.
Um problema extensível aos mais jovens que, por condições precárias de emprego, rendimentos baixos e incapacidade de acesso ao crédito, não vislumbram, para si, solução habitacional.
No que à nova construção diz respeito, tem-se assistido à construção de novas habitações na periferia da cidade. Contudo, essas novas casas não dão resposta às reais necessidades da classe média bejense, que procura, essencialmente, imóveis centrais, de maior dimensão e de tipologia superior. Por outro lado, mantém-se a lacuna da oferta de imóveis de tipologia T0 e T1, bastante procurados por jovens, jovens casais e pessoas deslocadas. Assiste-se, por isso, a um mercado muito virado para dentro e para o lucro imediato, sem capacidade de exploração de oportunidades e procura vigente.
Por seu lado, a reabilitação que poderia ter sido impulsionada com programas
como o IFRRU, uma vez que Beja possui uma panóplia considerável de edifícios
degradados e atrativos aos olhos dos investidores, tem sofrido os efeitos dos
entraves burocráticos e dos processos que esbarram em departamentos vários, por
questões técnicas e/ou falhas nas parcerias e articulações de entidades.
Embargos que determinam que este seja um mercado de indefinição e morosidade
excessiva.
Já por parte do governo central, seria de interesse que fossem revistas as políticas e programas de habitação – com olhos de olhar a todos e de ver, no presente o futuro - o acesso e distribuição dos fundos comunitários e concedida uma maior abertura às autarquias, com vista a um maior entrosamento e concertação das várias entidades na resolução de questões prementes, específicas e peculiares [na sua carecterização], consoante os territórios.
Tudo porque o acesso a uma habitação condigna é um
direito constitucional e, segundo Tolentino de Mendonça, “se a vida não
transbordar não é vida”. As casas, essas, para além de casas, “falam da
intimidade, aquém e além da pele. Falam do silêncio e da palavra, que umas vezes
se contradiz e outras não”.