O preço do Mundo
Portugal acordou com olhos postos no Baixo Alentejo, 35 detenções em "MegaOperação" levada a cabo pela PJ, através da Unidade Nacional Contra Terrorismo, por tráfico humano, associação criminosa e branqueamento de capitais.
Nada de novo ou de surpreendente para quem, de há uns anos a esta parte, tem presenciado e testemunhado o crescente, diria até exponencial e incontrolável, movimento migratório na região. Chegam da Roménia, Moldávia, Índia, Senegal, Paquistão, Marrocos, Argélia e mais recentemente de Timor, com promessas de trabalho nos campos alentejanos, alojamento, alimentação e remuneração – direitos básicos e humanos, ou assim deveria ser. Aos olhos de todos, são irrevogavelmente explorados ou largados à sua sorte, num país ocidental e democrático, visto como um paraíso na Europa.
As reportagens não mentem, muito menos os olhos de quem quer realmente ver. Vivem às dezenas, em edifícios, porque casas não são, sem condições de segurança, habitabilidade e higiene, pagando rendas indignas, com o dinheiro que não têm, custeando as deslocações para o trabalho – quando o têm - em transportes do patrono, não tendo acesso aos próprios documentos, mas pagando por eles valores inimagináveis, tal como pagam, a quem os intermedeia, para chegar a território luso, na ilusão de uma vida melhor.
Alguns, aqueles a que a sorte ainda vai raiando com o nascer do dia, é permito gerir o próprio dinheiro dentro de um circuito comercial restrito – retirem-se as conclusões que forem passiveis de serem retiradas. É fácil entender.
As ruas da cidade, vilas e aldeias são tecto para muitos, as estrelas como manto, a chuva e o frio por companhia, a tocar-lhes a pele – e isto nada tem de romântico.
É a realidade de Alqueva. Sim, é a realidade. Fechem-se os olhos para não ver, como é prática quando algo nos incomoda verdadeira e profundamente. Torne-se invisível o outro, que poderíamos ser nós (e somos, em tantas circunstâncias da vida). Permita-se que o racismo domine o discernimento e se queira ver “esta gente daqui para fora”, sem que se olhe diante do espelho e se perceba o quanto somos iguais. Grite-se, inclusivamente, contra o Qatar – que já lá vamos em seguida.
A verdadeira necessidade de mão-de-obra, nos campos alentejanos, abriu portas à chegada de novos habitantes estrangeiros, temporários ou permanentes, e Portugal sempre usou da sua vaidade de bom anfitrião. Abre portas sem perguntar quem é, ao que vem e por que vem. Não há severidade na lei nem fiscalização e meios capazes de controlar as entradas. Por mais pequenos que sejamos, territorialmente, a nossa pequenez assume maiores proporções no que toca a questões humanitárias - e desculpem novamente a ousadia, mas alguém falou em Qatar?
Aceitamos o mundo, mas a que preço? Oferecemos trabalho, mas que custo? Escancaramos a porta, com que segurança? Numa região já de si ostracizada e à margem do restante território, tudo o que não pode acontecer é ser-se permissivo e indiferente a redes de tráfico humano, a operar diariamente e há anos sucessivos, à luz do dia e à sombra da noite. Sabemo-lo. Sabemo-lo todos bem de mais.
E não, isto não é o fim do caminho, nem o meio da estrada. É o início de um trilho com muitíssimo para andar.
Mas o que realmente importa, nos flagela e incomoda visceralmente acontece no Qatar, a violação dos direitos humanos.
Pois bem, a todos quantos vociferam indignados, faço o convite a que se olhe, antes de tudo, para dentro, para o seu país, para a sua região, para a sua cidade.
Convido-os a reflectir sobre o que têm em comum os regimes dos países do Médio Oriente com as democracias (expansivamente) permissivas dos países do Ocidente. Porque as diferenças, essas, conhecemo-las bem.
Mas convido-os a mais, convido-os a reflectir sobre a essência do que lhes move a voz e a olhar para si. Será mesmo a inibição das liberdades alheias? Ou será a ameaça às próprias liberdades, num país estrangeiro? Porque é sabido, quando nos tocam nas nossas, reivindicamos. E aqui é necessário bom-senso e análise àquilo que são discursos egocêntricos, assentes no sentido de ameaça às liberdades individuais ocidentais, por distinção daqueles que realmente se movem em prol da defesa dos direitos humanos, em países como o Qatar.
Mas coloque-se ainda em questão a linha temporal que separa a decisão sobre o país acolhedor do Mundial de futebol e a sua concretização. A indignação, às vezes, também é preguiçosa. É ponto assente, desde o princípio, que questões fundamentais estavam em cima da mesa; divergências culturais e religiosas, regimes políticos opostos, leis, direitos ou a ausência deles. A todas as questões se sobrepôs o negócio. Porque tal como em todas as guerras ou relações de tensão entre países, também aqui falamos de interesse económico. Não sejamos hipócritas.
Em última análise, e a História não engana, que se mantenha presente que democracia e liberdade foram, são e serão sempre caminhos de autodeterminação e nunca de imposição externa. Quer se goste ou não. Quer se entenda ou não se queira entender.
Mas enquanto isso, porque muito há a reflectir entre um jogo e o seguinte, aqui, no Baixo Alentejo, há direitos humanos e fundamentais violados todos os dias, enquanto o negócio é cego e rei e o país permeável. Aqui, de portas abertas, o jogo também se joga e é mundial.
"No fim do jogo, peões e reis voltam para a mesma caixa." - Provérbio Italiano