Há vidas assim...

Há Vidas Assim...

“Quem Viver Abraçado na Vida que Há ao Lado não Vai Morrer Sozinho” (1)

A solidão e a falta de amor lançaram o João António nas margens da cidade. A fraternidade dos “sem nada” resgatou-o para a vida.

Ele era um homem de “meia idade”, expressão usada para designar alguém que já fez cinquenta anos, embora aparentasse um ar jovial. Era professor e tudo indicava que estava bem na vida. Tinha centenas de conhecidos, mas não tinha nenhum amigo ou amiga com quem pudesse falar de si, dos seus sonhos, das suas angústias, dos seus medos, das suas alegrias, das suas frustrações, enfim do verdadeiro João António que havia dentro do seu ser. Já tinha sido casado, mas agora vivia só, numa moradia ampla onde não entrava ninguém, a não ser o próprio. A sua vida ara um voo cego a nada. O que o trazia vivo era a ideia de viagem permanente visando a chegada a um futuro sonhado que nunca acontecia. Adorava, portanto, estar de partida, para, no entanto, chegar, vazio e triste, ao ponto inicial da viagem. Sempre que saia de casa, em trabalho ou lazer, fazia-o com o entusiasmo e a alegria de quem se ia encontrar com alguém que não via há muito e que o esperava. Como tal nunca acontecia, a permanência no ponto de chegada era sempre efémera, pelo que rapidamente iniciava a viagem de regresso com o entusiasmo de quem estando longe ansiava chegar ao “colo” afetuoso de quem se tinha despedido na partida. João António nunca permanecia, estava sempre de partida e chegada. A droga que o trazia vivo era o caminho, a viagem, onde o ponto de partida e o ponto de chegada eram coincidentes. E sempre que chegava, a solidão adensava-se como um nevoeiro espesso numa noite fria e húmida de Inverno entranhando-se pelo corpo até aos ossos. No princípio afogava a dor no álcool ao som de “Little Wing”, de Jimi Hendrix, tocado por Eric Clapton e Steve Winwood. Era um tema que lhe trazia boas recordações. 

Ao som desta música, num baile de liceu, tinha encontrado, na sua juventude, o que julgou ser a mulher dos seus sonhos. Bastou um olhar, um só olhar, para saber que era ela. No entanto, esta aparição da mesma forma que surgiu desapareceu como se fosse um fantasma. João António procurou-a por todo o baile, e por todas as ruas da cidade sem nunca conseguir encontrá-la, pelo menos assim ele o julgava, embora tivesse dificuldade em separar a verdade da ficção. Era mais uma questão de fé. Por essa lembrança e pela esperança do reencontro, o mesmo é dizer do amor, resistiu à solidão, até que o álcool tomou conta da sua vida. Vagueou pelas ruas cidade, gritando pela calada da noite um verso que ele não sabia bem de onde vinha nem porque o tinha retido: “Nasci para conhecer-te e chamar-te Liberdade”. No entanto, às vezes é necessário descer ao fundo “dos infernos” para renascer. Foi o que aconteceu ao João António. Hoje não é um homem só. Faz parte da comunidade dos “sem abrigo” que habitam a cidade, constituída por migrantes de vários países que aqui vieram em procura de uma vida melhor e que encontraram nos poderes públicos a indiferença que caracteriza a falta de humanidade. Ensina-lhes português, ajuda-os nos contactos com a máquina burocrática do Estado e lidera o movimento contra as câmaras de vigilância que os governantes querem colocar nas ruas da cidade para policiar a vida dos cidadãos. A solidão e a falta de amor lançaram o João António nas margens da cidade. A fraternidade dos “sem nada” resgatou-o para a vida.

(1)   – Texto da canção de José Mário Branco, “Do que um homem é capaz”.

(2)   – Parte final do poema de Paul Éluard, “Liberdade”.

 

 

 

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