SAPERE AUDE
Ainda sobre as eleições legislativas de 10 de Março…
Pela primeira vez, depois do 25 de Abril, o PCP não elegeu nenhum deputado pelo Alentejo; o Chega, em número de votos, alcançou o segundo lugar em Beja e em Portalegre, e o terceiro em Évora. Tornou-se, assim, a segunda força política na região, elegendo um deputado por distrito. Perplexo, um amigo dizia que não conseguia compreender como uma região conhecida pelas movimentações operárias de contestação ao regime do Estado Novo, e consequente repressão pelas autoridades da época, se havia “virado” para a direita, ao votar tão significativamente num partido que se situa numa das alas mais “intensas” da direita, no caso, entre a direita liberal-conservadora e a direita radical.
Julgo que a resposta possível se encontra na afirmação proferida por Pedro Nuno Santos, no discurso da noite de 10 de Março, por si só, quase um programa: “Não há 18% votantes racistas ou xenófobos em Portugal, mas há muitos portugueses zangados que sentem que não têm tido representação. Queremos reconquistar a confiança destes portugueses e mostrar-lhes que a solução para os problemas concretos das suas vidas passa pelo PS e não pelo Chega e pela AD. [Logo,] o nosso caminho começa agora, hoje”.
Sublinharia que o mal-estar e o ressentimento que se fazem sentir quanto à democracia representativa não são despiciendos nesta equação. Estes resultam, em grande parte, por um lado, da descarada impreparação – ética e pessoal - dos deputados, na sua generalidade, para serem representantes do povo, eleitos para o parlamento e, por outro lado, da ausência de uma efectiva e verdadeira consciência crítica da parte dos cidadãos. Paradoxalmente, os deputados em vez de representarem efectivamente os portugueses, agindo em função de projectos ideológicos e definindo estratégias de futuro, sérias e condignas, que possam solucionar os problemas que minam a vida das pessoas, mostram-se demasiado preocupados com a espectacularização do poder e da política, reduzindo-seexcessivamente a uma reprodução política, burocratizada, e a uma encenação mediática: o que parece mover estas pessoas (mais uma vez, na generalidade) é fazer jogos de protecção de “quintas e de quintais” e, entretanto,descobrir tácticas eleitorais que permitam chegar e perdurar, sem fim à vista, no poder. Recorde-se Christopher Lasch que no seu derradeiro livro intitulado” The Revolt of the Elites and the Betrayal of Democracy” (1995) critica a conduta e a atitude das elites ocidentais, relevando que “o maior perigo para a democracia não provinha das massas, mas sim das elites cada vez mais corruptas, desenraizadas, cosmopolitas e, consequentemente, cada vez menos patriotas. Segundo o autor americano, estas elites teriam todos os vícios da aristocracia, mas nenhuma de suas virtudes.”
Ora este é um terreno fértil para a ascensão do populismoque, segundo Alain de Benoist, não pode ser considerado uma doutrina ideológica, mas antes, um estilo de governação. Aliás, “diante [do] divórcio da esquerda e da direita com o povo, o populismo aparece, para de Benoist, essencialmente marcado pelo apelo a um reencontro com esse mesmo povo: «O populismo não quer, no fundo, senão povoar a democracia» (…)”. Nesta linha de pensamento, o populismo tanto pode ser de direita, como de esquerda.
Falei acima de uma trivializada falta de consciência crítica da parte dos cidadãos. Esta resulta, e é resultado, duma concepção de sociedade onde se valoriza uma subjugação à técnica e à tecnologia, à escravidão dos números e às regras do mercado. Isso levou quase a uma demolição da perspectiva humanista da cultura e da escola: a cultura começou gradualmente a ficar refém da imagem, do efémero e do dinheiro, transformando-se num produto comercial, de consumo, preferencialmente, de massas – nivelar por um “tudo é cultura”, aumenta o fosso entre o entretenimento e o conhecimento que liberta -; enquanto isto, o ensino incorporou igualmente os princípios da mercantilização: o acento passou a estar nas competências adquiridas, as humanidades são reduzidas ao mínimo nos curricula nos vários graus de ensino, os professores – e reporto-me em particular aos do ensino superior – passam a ser avaliados de acordo com critérios numéricos, sendo mais importante quantos papers publicados em revistas indexadas reúnem, num dado momento, do que a “viva e vivida” relação/interação com os estudantes. Estes últimos – fruto deste ciclo – são cada vez menos inquietos, preferindo notoriamente estar com um professor que ”facilite”, ou seja, que adopte uma didática minimalista – slides com fartura, sínteses, sumarização das matérias e pouca reflexão ou discussão conjunta – como forma de lidar com a complexidade. Recordo que numa altura em que tive uma determinada responsabilidade na organização/governação de uma instituição de ensino superior, atrevi-me a ousar criar um programa cultural, envolvendo linguagens estéticas mais ricas e elaboradas, o que implicava obviamente a sua decifração, acessível a toda a comunidade académica. Ressalvo, todavia, que o seu propósito primeiro passava pela aposta na formaçãocultural e holística dos estudantes. Hoje, decerto também por inépcia da minha parte, tenho a convicção de que esse fim não terá sido percebido, nem pelos alunos, nem pelos outros.
Neste panorama, neste ciclo que se retroalimenta, não é de estranhar que os políticos de hoje apresentem as características de que falo acima.
Quando o líder do PS fala da sua pretensão em “reconquistar a confiança destes portugueses”, espero que essa vontade seja partilhada por todos os partidos com uma matriz ideológica bem definida (contrariamente aos populistas, subjugados aos modismos, aos conteúdos em voga no presente). Nesse sentido, “a solução para os problemas concretos das suas vidas passa” pelos partidos que, ideologicamente, melhor os representem. Para que a democracia saia fortalecida. Ou seja, nas palavras mais uma vez de Christopher Lasch (tradução em português do Brasil), isso implica a percepção/assimilação de que existe “…uma ética [que é] mais fortalecedora do que a tolerância. A tolerância é coisa boa, mas é apenas o ponto de partida da democracia, não o seu destino. Na nossa época, a democracia está sendo ameaçada mais seriamente pela indiferença do que pela intolerância ou superstição. Somos muito eficazes na hora de encontrar desculpas para os nossos atos – pior, quando queremos desculpar os que «estão em desvantagem». Estamos tão ocupados defendendo nossos direitos (direitos conferidos, na maior parte, por decreto judicial) que não nos preocupamos muito com nossas responsabilidades. Raramente dizemos o que pensamos, com medo de ofender. Estamos determinados a respeitar todos, mas nos esquecemos que este respeito tem de ser merecido. Respeito não é sinônimo de tolerância nem é a valorização de «estilos de vida e comunidades alternativas». Esta é uma forma turística de se abordar questões éticas. Respeito é o que experimentamos diante de realizações admiráveis, caracteres admiravelmente formados, talentos naturais bem aproveitados. E está necessariamente vinculado ao exercício do julgamento discriminador, não à aceitação indiscriminada.”
Esta estátua e a polémica à volta dela foi o que me veio à cabeça quando terminei este texto. Por isso, decidi que seria ela a ilustrá-lo.
Para os interessados, mais informação sobre o tema em https://www.dn.pt/mundo/exercito-japones-pediu-uma-escrava-sexual-para-cada-70-soldados-na-ii-guerra-11594897.html/