25 Abril: Reforma Agrária nasceu em Santa Vitória, onde não se esquece a luta
Mal se deu o 25 de Abril de 1974, os emigrantes António Merêncio e Fernando Guerreiro apressaram-se a regressar a casa, no Alentejo. E bem a tempo de participarem no início da Reforma Agrária.
“O 25 de Abril vivi-o a na Alemanha, com muita alegria, com os meus colegas portugueses. E alguns alemães também”, conta à agência Lusa António Merêncio, 77 anos, com a memória fresca.
Natural de Santa Vitória, concelho de Beja, regressou meses depois e foi um dos trabalhadores a ocupar a Herdade do Monte do Outeiro, junto da aldeia e que era do agrário José Gomes Palma.
“Juntou-se um grupo de malta que estava desempregada e quisemos ir trabalhar”, diz. Mas o feitor recusou e voltaram para trás.
Após uma reunião com o Sindicato dos Trabalhadores Agrícolas do Distrito de Beja, insistiram e, com o patrão em Lisboa e o feitor a teimar, dessa vez não "arredaram pé" e ocuparam as terras. Mas “sem violência”, afiança Merêncio.
A herdade, com mais de 700 hectares, foi a primeira a ser ocupada, a 10 de dezembro de 1974, dando início à Reforma Agrária, de acordo com o livro “Reforma Agrária – A Revolução no Alentejo”, da autoria de José Soeiro, um dos “protagonistas” de todo o processo.
“Estava uma vergonha”, com árvores que não eram limpas há “quase 20 anos”, e “praticamente só servia para caça”, lembra Merêncio, frisando que tudo mudou: “Começámos a limpar, a trabalhar e a viver à nossa custa.”
A ocupação “não foi por vingança”, justifica. Essa, como outras que se seguiram, “foi por necessidade de ganhar algum, não havia dinheiro para alimentar a família”.
Regressado de França assim que lhe "chegaram aos ouvidos" notícias do 25 de Abril, através do seu rádio Mediator de seis pilhas em que ouvia a BBC inglesa e canais russos, Fernando Guerreiro também evoca o “muito desemprego” no Alentejo desses tempos.
A tarefa que "abraçou" foi ajudar a distribuir os desempregados “de herdade em herdade”, só que “alguns [patrões] aceitavam e outros não”.
Fernando, hoje com 74 anos e residente na Mina da Juliana, que pouco dista de Santa Vitória, recorda que, no Monte do Outeiro, se José Gomes Palma “atende os objetivos dos trabalhadores, possivelmente eles não tinham ocupado a propriedade”.
O patrão “até não era dos piores que aí estava”, admite, mas as pessoas, além de quererem trabalho, almejavam algo tão simples como uma casa de banho na fábrica de cerâmica da herdade.
“Quem mandava na propriedade era ele e mais ninguém” e não houve casa de banho. “Foi por isso que as pessoas avançaram para a ocupação”, relata.
Nesses inícios da Reforma Agrária, “o sindicato dizia para a malta não avançar assim, não se sabia o que é que ia acontecer”, lembra. Só que “dar conta do povo é difícil, chegava-se a ocupar às 10 e às 12 e já ninguém conseguia dar conta disso”.
Segundo José Soeiro, a seguir à Herdade do Monte do Outeiro, vieram mais ocupações em Santa Vitória. E foi aqui que, a 17 de outubro de 1975, 184 trabalhadores, por proposta do sindicato, decidiram criar a primeira Unidade Coletiva de Produção (UCP), a "Vanguarda do Alentejo", para gerir as herdades ocupadas.
Do outro ‘lado da barricada’, Augusto Casadinho, hoje proprietário da Herdade da Chaminé, com cerca de 370 hectares, também em Santa Vitória, guarda memórias mais ‘negras’ desses tempos.
Recorda à Lusa que, em 1975, quando tinha 13 anos e vivia e estudava no colégio em Lisboa, a herdade, então na posse do pai, foi ocupada: “O meu pai apareceu-me lá em Lisboa chorando”.
“Começaram do nada, tinha-se ido comprando, não se tinha dinheiro, a vida antigamente era totalmente diferente”, revive, sentenciando que a Reforma Agrária só serviu para as pessoas ficarem “com raiva umas às outras”.
Nas ocupações, “acabaram por destruir tudo”, mas a sua herdade, devolvida à família no início dos anos 80, nem foi das piores: “As máquinas [estavam] um bocado destruídas, mas houve casos em que nem um parafuso sobrou”.
“O 25 de Abril não serviu para nada, só serviu para destruir, como destruíram empresas”, frisa.
A Reforma Agrária ganhou força em 1975 e prosseguiu até 1976, ocupando mais de 1,1 milhões de hectares de terra (25% da superfície arável de Portugal) no Alentejo, Setúbal e em concelhos dos distritos de Lisboa, Santarém, Faro e Castelo Branco.
A “Lei Barreto”, aprovada no parlamento em 1977, da autoria de António Barreto, então ministro da Agricultura do I Governo Constitucional de Mário Soares (PS), começa a mudar esta "revolução" nos campos.
O diploma impôs limites à Reforma Agrária, abriu portas ao fim das UCP e a um longo processo de desocupações e devoluções de terras e indemnizações, que ‘ganha fôlego’ com governos da Aliança Democrática (AD). Em 1988, na governação de Cavaco Silva, veio a nova Lei de Bases da Reforma Agrária, mas a regularização do uso da terra expropriada ou nacionalizada só foi concluída em 2000, pelo então ministro da Agricultura Capoulas Santos (PS).
Hoje, 50 anos depois do 25 de Abril, a Reforma Agrária, que conheceu episódios de violência, como a morte de dois trabalhadores agrícolas em Santiago do Escoural, em Montemor-o-Novo, mantém-se uma "ferida aberta" entre trabalhadores e agrários.
“Enquanto houver esta geração, que é a minha, não vai sarar”, afiança António Merêncio, com Augusto Casadinho a concordar consigo, mas a lembrar que “as pessoas mais velhas vão acabando” e com “os mais novos é diferente, não têm essa noção” do que foi o 25 de Abril.
Já Fernando Guerreiro considera que a Reforma Agrária só teria valido a pena “se tem continuado”. E, 50 anos depois do 25 de Abril, ainda vê Portugal com “um futuro muito encalhado”. O que resta, então? “Há que continuar a lutar”, defende.