Pode a pandemia “acabar” com o Cante Alentejano?
Quando em 27 de novembro de 2014, a UNESCO se decidiu pela inscrição do Cante Alentejano na Lista do Património Cultural Imaterial da Humanidade, esta expressão cultural do povo alentejano, vivia já, fruto da dinâmica criada com o próprio processo de candidatura, momentos de forte afirmação. Hoje, com pandemia da COVID-19, teme-se um retrocesso nesse processo de afirmação.
É certo que o reconhecimento pela UNESCO, do Cante Alentejano como património mundial, veio dinamizar exponencialmente o Cante e o movimento social que o mesmo comporta. Formaram-se novos grupos, renovaram-se geracionalmente quase todos os grupos, surgiram novos cantadores, gravaram-se CDs como nunca, artistas de outras áreas musicais abriram-se a parcerias com o Cante, e passámos a ver os Corais Alentejanos esgotarem as principais salas de espetáculos do país.
Porém, a chegada da pandemia da COVID 19 provocou um autêntico terramoto no frágil edifício da programação e produção cultural do nosso país, deixando em extrema dificuldade todo o setor ligado ao mundo das artes e do espetáculo.
As limitações à realização de eventos, a especificidade e forma de apresentação do cante coral alentejano, a que se junta a avançada idade de muitos dos seus intérpretes, paralisou quase por completo a atividade dos grupos, dos ensaios às apresentações e desfiles públicos.
Se no campo dos profissionais da cultura é de sobrevivência que falamos, com as dificuldades conhecidas por parte de músicos, produtores, técnicos de som e luz, e de um sem numero de profissionais que fazem a cultura acontecer, no caso do Cante Alentejano a pergunta que se impõe é: Que mazelas vai esta pandemia deixar no Cante?
Pedro Mestre, músico, “ensaiador” de vários grupos, incluindo o Rancho de Cantadores de Aldeia Nova de São Bento, em conversa com O Atual, conta-nos que Cante Alentejano vinha nos últimos anos afirmando-se como uma realidade musical e cultural a nível nacional, reconhecimento e respeito que levou muitos anos a conquistar no país e também na região, e que provavelmente a pandemia vai deitar por terra todo este trabalho.
Para Pedro Mestre, não está em causa, enquanto existirem alentejanos, a salvaguarda do Cante como expressão vocal de um povo, porque assegura o músico, cada vez mais vão surgindo cantadores a solo, músicos que adaptam peças do Cante e o valorizam de uma outra forma enquanto expressão artística. A grande preocupação, diz Pedro Mestre, é que a pandemia, com todas as regras impostas, obviamente com o objetivo de a controlar, faz com que os grupos corais tenham dificuldade em desenvolver o seu trabalho, uma vez que os grupos são na sua maioria formados por cantadores com alguma idade, incluindo-se por isso em grupos de risco.
A maioria dos grupos, diz Pedro Mestre, mantinham-se firmes em bengalas e agora a COVID tirou essas bengalas.
A quase totalidade dos grupos está com receio de retomar a atividade, embora com muita vontade de cantar, mas também com muito medo. O que assusta Pedro Mestre, é que com esta situação se tenha outra vez de voltar a começar do zero todo este trabalho de afirmação do Cante Alentejano.
As tentativas de regresso à atividade por parte de alguns grupos, tem chocado com uma realidade que Pedro Mestre considera de difícil ultrapassagem. O uso de máscara e o distanciamento entre cantadores não funciona, muito menos com grupos corais grandes, como é o caso dos Cantadores de Aldeia Nova, em que não há palco que chegue para cumprir o distanciamento, para além do que se perde, como seja a força da união das vozes que é quase a harmonia do coro e a grandiosidade do Cante.
Tomé Pires, presidente da Câmara Municipal de Serpa, entidade responsável pela dinamização da candidatura do Cante a Património Mundial e pela implementação do Plano de Salvaguarda, reconhece as dificuldades que todo o movimento associativo atravessa, em função da pandemia, e das dificuldades acrescidas para o Cante Alentejano em função das suas particularidades.
Para o autarca, tal como o que se está a fazer no concelho de Serpa, o importante agora é ir acompanhando aos grupos corais, conhecendo melhor a sua realidade e necessidades, mantendo, mesmo sem ensaios e saídas dos grupos, a esperança que logo que seja possível os grupos voltarão à atividade, e aí, será importante que as instituições, nomeadamente as autarquias, reforcem o apoio a estas estruturas, proporcionando-lhes condições para que estas voltem à atividade.
Questionado sobre se o Cante Alentejano irá vencer a pandemia, Tomé Pires não tem dúvidas que sim, que o Cante, tal como em outras situações muito difíceis soube perpetuar-se na memória do nosso povo, conseguirá também vencer mais esta batalha. Para o presidente da Câmara Municipal de Serpa, o maior receio é das baixas que esta batalha irá causar, por isso, acreditando que vai haver muito Cante quando vencermos a pandemia, Tomé Pires diz que importa agora tudo fazer, cumprindo as recomendações das autoridades de saúde, para rapidamente ultrapassarmos esta dificuldade.