Falta de feno é o pesadelo do verão do Baixo Alentejo
João Madeira tem 2.500 animais numa propriedade em Mértola, atualmente com pouca comida e água, e as forragens, quando existem, triplicaram de preço. A falta de alimentos é o pesadelo deste verão dos agricultores do Baixo Alentejo.
Em pleno Parque Natural do Vale do Guadiana a herdade do Ursal, da Sociedade Agrícola Vargas Madeira, tem dois irmãos como sócios, um deles João Madeira. São a sexta geração de agricultores, dedicam-se essencialmente à produção de ovelhas, tendo 2.500 cabeças divididas por algumas parcelas dos 950 hectares da herdade.
Tantos animais assim, duas mil fêmeas adultas, da raça campaniça (autóctone da região do Campo Branco, que compreende os concelhos de Mértola, Almodôvar, Castro Verde e Ourique), poderiam ser uma bênção, mas agora são antes uma dor de cabeça.
São 12:30 e numa das parcelas as ovelhas juntam-se e vão passar assim de pé, quase coladas, sem se mexerem, a hora do calor.
É para afastar as moscas, diz João Madeira, quando explica à Lusa a razão dos seus receios: “Temos uma situação que é fruto de uma sequência de anos secos. Estamos num ano seco mas podemos dizer, sem grande exagero, numa década seca. E isso, numa exploração como a nossa, que depende essencialmente da pastagem, uma exploração em que mais de 80% da superfície são pastagens, provoca uma disrupção quase total da nossa lógica produtiva”.
A seca contínua em que vivem os agricultores do Baixo Alentejo fez com que as pastagens não tivessem crescido pelo que não há “forragens autoproduzidas”.
João Madeira recorda que há dois anos que não há colheita de forragens, mas também o campo não produziu a erva necessária para as ovelhas se irem alimentando.
Os agricultores, salienta, estão esmagados entre a falta de alimentos no campo e um mercado de alimentos para animais que “está com um nível de inflação quase inacreditável”. “Estamos numa tempestade perfeita que desafia o nosso sentido de sobrevivência”.
Para já, vai gerindo as parcelas de terreno e as pastagens que ficaram do inverno e primavera passados, ervas secas e rentes ao chão, quase invisíveis. Quando tudo o que restar for terra há de mudá-las para outra parcela ainda intacta. Mas vai em breve ter de começar a dar-lhe suplementos, que já comprou, e depois serão totalmente alimentadas com produto que ainda não tem.
“Estamos a gerir a crise” até à água do outono, se ela cair, mantendo os animais produtivos. E “estamos a gerir a água, da melhor forma que conseguirmos”.
João Madeira preocupa-se com a preservação da qualidade da água, das pequenas barragens de terra batida, mas sabe que ela vai acabar este verão e que terá de se socorrer de furos artesianos.
Afirma que já tem barragens secas, teme que antes de começar de novo a chover possa ficar totalmente sem água.
Com o calor a chegar em força a Mértola, onde choveu até 17 de dezembro e desde então pouco mais que nada, João Madeira já admite vender ovelhas, como vizinhos seus fizeram, mas diz que por enquanto vai conseguido gerir, “à custa da tesouraria e de um esforço de gestão cirúrgica”.
Porque vender não é a solução. “Há aspetos que não podemos perder de vista enquanto sociedade. O sequeiro, apesar de viver da água da chuva, precisa de água. E a sociedade, mais tarde ou mais cedo, vai ter de olhar para este processo”.
O drama, refere, é a palha a 21 cêntimos o quilo. “É irracional, tem um valor de quatro ou cinco cêntimos e custa 20”. E o feno e outras forragens também triplicaram de preço.
E o borrego também vale hoje mais? João Madeira abana a cabeça, o preço está mais baixo, não ultrapassa os 75 euros por animal.
O drama de João Madeira é o drama dos agricultores do sequeiro do Baixo Alentejo.
Di-lo o presidente da Associação de Agricultores de Almodôvar, Ernesto Botinas, também ele agricultor, com 700 animais, alimentados com água de furos artesianos, porque a das barragens acabou, como, vaticina, vão acabar todas as águas de superfície na região até agosto.
Os furos, acrescenta, são o último recurso, porque os poços e as nascentes de superfície secaram e as pequenas barragens seguem o mesmo caminho.
Na sua exploração Ernesto Botinas produz cereais, forragens, palhas, para alimentar o gado. “Este ano a produção não existiu, basicamente. Não se conseguiu fazer forragens, as palhas não existem e no mercado estão a preços exorbitantes que não são compatíveis com rentabilidade das explorações”.
A Ernesto Botinas e a João Madeira juntam-se outros 300 agricultores do concelho, alguns ainda em pior situação.
“Tenho pessoas que neste momento têm 50% do efetivo que tinham há um ano ou dois. Porque não têm condições para manter os animais, porque não produziram comida e a comida que existe no mercado está tão cara que não é compatível com manter a exploração”, observa.
Ernesto Botinas defende apoio estatal para que se comprem forragens em países do centro da Europa, porque Espanha tem também falta de alimentos. Mas João Madeira olha mais para perto, para 30 quilómetros a norte, onde há uma zona de agricultura próspera em Alqueva.
“A esses agricultores foram-lhes dadas ferramentas para eles levarem mais além a sua atividade. Nós o que pedimos é que nos deem os mesmos meios”, reclama à Lusa, à sombra de uma azinheira por testemunha, o ténue som das cigarras, mais ao longe uma seara de sequeiro que já não assegura o habitat da abetarda e do sisão.
João Madeira defende que a água da barragem de Alqueva chegue ao sequeiro do Baixo Alentejo, não para fazer regadio, até porque os solos são pobres, mas para com essa água poder ajudar o crescimento das pastagens quando o céu falhar.
Não está a falar, frisa, de grandes resultados de uma exploração, mas dessa exploração sobreviver e ter acesso a água para manter o território “mais ou menos vivo, sem andar em crise sistemática e muitas vezes à beira do colapso”.
Os agricultores do Baixo Alentejo, salienta João Madeira, estão numa zona de despovoamento iminente e estão na primeira linha de combate à subida do deserto. E acrescenta: “Parece-me que teremos de ser ajudados, não numa perspetiva assistencialista mas numa perspetiva estrutural”.
E quando o sol já vai a pique e nos campos também as cigarras se calaram deixa ainda um aviso: “Não nos podemos esquecer que as explorações agrícolas assentes na pecuária extensiva são a matriz da ocupação deste território. A sociedade e os governantes têm que começar a pôr na equação quanto é que custa um território vazio”.